Este artigo de Matthieu de Nanteuil (professor de sociologia na Universidade Católica de Lovaina), “L'Europe en guerre contre soi-même,” in La libre Belgique, 18 de Agosto de 2014, é muito actual e é uma excelente ajuda para reflectirmos sobre o momento que a Europa vive.
No momento da crise ucraniana, a União Europeia (UE) aprovou um plano de apoio de 11 mil milhões de euros à Ucrânia, "com a condição de o país assinar um acordo com o FMI para iniciar reformas" [...], enquanto os Estados Unidos, com o apoio da OTAN, decretaram sanções. Não há dúvida que é melhor do que nada: em 1956 (Budapeste) e 1968 (Praga), as potências ocidentais não acordaram. Neste jogo, contudo, a Ucrânia arrisca a transformar-se no xadrez em que os grandes blocos continentais desenvolvem a sua estratégia e o seu cinismo. A Europa, em particular, parece incapaz de propor outra coisa: o retorno de nacionalismos exacerbados e a paralisia das instituições europeias obrigam-na a fazer da austeridade um novo eixo diplomático e a correr atrás de uma actualidade que controla cada vez menos. É isto a Europa?
Para compreender a derrocada do espírito europeu, é preciso regressar ao ponto que se está a apagar progressivamente na nossa memória colectiva: o da nossa relação com a paz. Os acontecimentos de 6 de Junho de 1944, por muito importantes que sejam, por um lado exaltaram mas, por outro, petrificaram a representação do sentido da construção europeia: " A Europa significa paz".
Ignoramos, contudo, que tirada do seu contexto, esta visão não faz senão perpetuar uma concepção muito restritiva da paz — a paz entendida como não-uso das armas, ausência de guerra. Ora, esta visão é precisamente o inverso da génese da construção europeia, e, mais precisamente, o inverso da história da reconciliação franco-alemã. O que funda a paz não é a simples cessação das hostilidades, mas a construção de uma cultura do "comum", da defesa de um ideal de justiça capaz de ultrapassar as múltiplas divisões que até aqui tinham dilacerado o corpo social.
Porque antes da paz, existia a justiça — especialmente a justiça social. Antes da CECA, o Mercado Comum e a União europeia, houve a invenção dos sistemas de segurança social, o acesso das mulheres ao direito de voto e a vontade de fazer avançar os direitos fundamentais, especialmente os direitos sociais. Para fazer da Europa "um continente de paz", foi preciso construir primeiro uma sociedade que tivesse consciência das suas profundas divisões e que se comprometesse a vencê-las; foi preciso inventar uma consciência global de si e dos outros, materializada em formas concretas de solidariedade. Foi preciso um terreno de significações e de experiências partilhadas.
O que ameaça a Europa de hoje não é a ausência de paz, mas uma paz esvaziada da sua substância, uma paz esquecida da justiça social que lhe deu origem. Esta paz sem solidariedade tem dominado de há dez anos para cá, desde o momento em que — sob a presidência de J. M. Barroso — a Comissão Europeia deixou de ser uma instituição garante da ideia europeia para privilegiar o mercado em detrimento dos bens públicos; os direitos económicos em detrimento dos direitos sociais; a austeridade em detrimento do apoio ponderado aos Estados membros mais vulneráveis. Usada a tempo e a contratempo, esta estratégia serve, não raro, para justificar o imobilismo da União Europeia em matéria de governança assim como o seu tom falsamente voluntarista para impedir eventuais "agressões exteriores"; na realidade, essa estratégia não atinge os seus fins. Não tem qualquer relevância face a agressões efectivas, como na Crimeia, e nunca poderá fazer da UE uma potência capaz de prevenir as crises internacionais — o caso da
Síria é um triste exemplo disso. No seio da União, essa estratégia vem acompanhada do ressurgimento dos discursos nacionalistas e da desagregação do sentimento de pertença à União. O que fazer?
A primeira tarefa de todos os que se sentem ligados à Europa é iniciar a crítica deste discurso repetitivo e simplista que acaba por fazer da paz uma palavra vazia de sentido. É preciso propor uma leitura mais complexa da paz, mas sociológica: a paz só foi possível porque foi a expressão de um determinado relacionamento com o mundo que certas políticas da UE se preparam para destruir.
A segunda tarefa é compreender até que ponto a refundação de uma cultura comum é directamente posta em perigo por políticas de austeridade que confundem os meios com os fins. Em vez de enveredar pela mutualização da dívida, a UE insistiu em uma austeridade contraproducente, em prejuízo da autonomia democrática dos seus
membros e arriscando acentuar ainda mais as fracturas de um continente sem projecto, onde várias décadas de concorrência fiscal e social enfraqueceram os gérmenes de uma cultura comum.
A terceira tarefa é a de redesenhar um horizonte capaz de transcender, nem que seja parcialmente, as clivagens entre partidos. A solidariedade foi, desde há meio século, o pilar da paz. Abandonada desde há muito, a solidariedade deve tornar-se de novo o seu horizonte. Trabalho de grande fôlego que exige sinais concretos: além de uma união bancária, é preciso um Banco central ao serviço do crescimento e não o inverso; uma harmonização fiscal e social progressiva; a criação de uma salário mínimo de base europeia. Sem esquecer o que é sem dúvida essencial: uma política migratória coordenada entre Estados membros, capaz de dizer aos Roma que em todo o espaço europeu se podem sentir em casa [...].
Quanto ao novo duo que hoje está à frente da duas mais importantes instituições da União (o conservador Jean-Claude Juncker para a Comissão, o socialista alemão Martin Schulz para o Parlamento), espera-se deles que dêem um novo impulso a um projecto político europeu adaptado ao século XXI. Da paz à solidariedade, a Europa tem de mudar de paradigma. Esta questão não interessa apenas aos progressistas, mas condiciona o devir da própria cultura europeia; dito de outra forma, o sentimento de pertença dos cidadãos à UE.
De facto, já não é a guerra que ameaça a Europa: é a fraqueza das instituições e das práticas de solidariedade à escala do continente que dilui a adesão dos cidadãos ao projecto europeu. Na verdade, o paradoxo é que, mesmo sem armas, esta situação arrisca-se a gerar um continente em guerra contra si mesmo.
Deixo aqui a opinião de Roberto Mangabeira Unger, professor de história em Harvard e ex-ministro do Brasil:
ResponderEliminar"A adesão [de Portugal] à União Europeia pareceu ser uma tábua de salvamento. Pode ser uma complemento de um projecto nacional forte, mas como substituto de uma estratégia nacional é uma calamidade. Virou narcótico em que o país, de joelhos, fica esperando ser salvo pelos tios mais ricos, recebendo esmola e ordens. É inconcebível que a elite governante portuguesa, de todos os partidos, tenha colaborado nesse resultado! Vamos dizer a verdade: [isto é] Vichy. Quem é que governa Portugal? É o marechal Pétain." (in entrevista ao Jornal de Negócios, sexta-feira, 11 de Outubro de 2014)