Entrevista ao tradutor do « Evangelho de Judas »
(tradução enviada por Mariana Mendes Pereira)
(tradução enviada por Mariana Mendes Pereira)
Os sítios Internet do “La Croix” e do “Monde de la Bible” publicam informações sobre o conteúdo de um manuscrito copta de um evangelho apócrifo considerado perdido, “reabilitando a figura de Judas”. O tradutor do documento exprime-se pela primeira vez publicamente sobre o assunto.
É estranho que Judas seja “notícia” na actualidade. No entanto, o célebre editor americano National Geographic Society não hesitou, no dia 6 de Abril, em tornar pública uma informação perturbadora: a tradução de um texto que se intitula “evangelho”, redigido provavelmente em meados do século II da nossa era, e assinado com o nome de Judas, o discípulo que traiu Jesus. Este texto está de ora em diante acessível, em língua inglesa (neste momento).
Numa conversa exclusiva, concedida ao La Croix e ao Monde de la Bible, o professor Rodolphe Kasser, titular honorário da cadeira de coptologia da Universidade de Genève, que traduziu o manuscrito do copta não esconde a sua emoção: “foi para mim um choque quando, em 2001, tomei contacto com este manuscrito que julgávamos irremediavelmente perdido, uma vez que conhecíamos a sua existência através de uma menção do bispo Ireneu de Lyon (130-202 d. C.) que se indigna contra este texto! De qualquer modo, é extremamente raro encontrar um manuscrito de um tratado tão antigo. E este é notavelmente completo: temos três quartos do texto.”
O apóstolo referido como traidor, que viveu na Palestina no início do século I e de quem os evangelhos contam ter vendido Jesus por trinta moedas, terá escrito para justificar a sua traição? O seu papel na Paixão – nefasto mas essencial – sempre intrigou: porque é que ele indica Jesus aos seus carrascos beijando-o? Porquê, pouco tempo depois, fica com remorsos, deita fora o dinheiro e se enforca?
Um documento de um interesse excepcional
Este novo manuscrito poderá modificar a nossa visão dos Evangelhos? Estas questões fazem sorrir Rodolphe Kasser: “Sim, de algum modo a figura de Judas é “reabilitada” neste texto, porque o seu papel negativo encontra uma explicação positiva. Mas convém dizer e repetir que se trata de uma interpretação posterior imaginada no século II d. C. Não se encontra aqui nenhuma informação histórica nova sobre o verdadeiro Judas Iscariotes”.
Isso não impede que este “Evangelho de Judas” tenha um interesse extraordinário para melhor compreender os inícios do cristianismo, que se vai desenvolvendo mais ou menos clandestinamente no Império romano, a par de outras correntes religiosas. Para Rodolphe Kasser, de facto, se este texto foi redigido em grego (depois traduzido em copta) num meio já muito familiar do cristianismo, releva no entanto claramente de um outro movimento religioso: a “gnose”, que em grego significa “conhecimento”. Trata-se de um tipo de religião ou filosofia esotérica composta de inúmeras seitas, que se desenvolveu entre o segundo e o quarto século d. C. no Império romano.
Constituídos por pequenos grupos de iniciados, os gnósticos, inspirados por algumas ideias filosóficas gregas e pelas Escrituras bíblicas, reinterpretavam o cristianismo à sua maneira. Pensavam que o verdadeiro Deus era incognoscível e incriado “exterior à matéria”. Estava disfarçado aos olhos dos homens num deus inferior malfazejo, criador do mundo, o deus bíblico. Para os gnósticos, o mundo é pois um lugar infestado pelo mal, as trevas e o pecado, onde se adora um usurpador. Seriam apenas “eleitos”, salvos, aqueles que escapassem a esta fraude e aguardassem a perfeição através da iniciação a práticas, a palavras de tipo mágico. Esses alcançariam a luz, o verdadeiro Deus após um percurso difícil. Seria inútil tentar converter outros, ou reproduzir-se, porque o mundo caminha no seu conjunto para a perdição…
Compreender melhor o movimento gnóstico
Esta visão tão pessimista entrava em total contradição com a mensagem de salvação universal dos primeiros missionários cristãos! A Igreja, depois de 313 – data em que o culto cristão é autorizado com benevolência pelo Império romano – afastou logicamente, do cânon bíblico, os inúmeros textos gnósticos, e outros com carácter demasiado legendário. Ficam a ser conhecidos com o nome de “apócrifos”, isto é “ocultos”…
Os manuscritos destes textos desapareceram pouco a pouco, vítimas de campanhas de destruição, do esquecimento dos homens ou do desgaste do tempo. O movimento gnóstico chegou ao nosso conhecimento sobretudo através dos argumentos desenvolvidos contra ele pelos teólogos da época, em textos de controvérsias. Daí a importância do “Evangelho de Judas”, que abre um acesso directo a este pensamento e ajudará a melhor compreender as respostas dos cristãos desse tempo.
A narrativa desenvolvida no “Evangelho de Judas”, começa por mostrar Jesus a encontrar-se com os seus discípulos para preparar a Páscoa. Jesus faz troça deles e explica que celebrar a eucaristia é inútil! “Procura instruí-los nas ideias gnósticas, mas verifica, explica Rodolphe Kasser, que eles são demasiado estúpidos para compreender isso. Excepto Judas, que os outros detestam mas a quem Jesus tem especial afeição”. Jesus, no final de um longo diálogo em que o inicia e interpreta os seus sonhos, pede directamente a Judas para o entregar às autoridades a fim de se libertar do seu corpo material e regressar à luz.
“O escriba sabia que um tal título provocaria o escândalo!”
E a narrativa termina sobriamente no encontro de Judas com os Judeus que procuram Jesus. “O autor dirige-se a um público que conhece os evangelhos e ao mesmo tempo, o seu objectivo é revelar-lhe o seu “verdadeiro” sentido, revela o especialista. Os gnósticos sempre gostaram de “retomar” personagens que simbolizam o mal ou a ambiguidade na Bíblia, como Caim, o primeiro criminoso; o rei Herodes que massacra os meninos inocentes; ou ainda Tomé, o discípulo incrédulo; e, neste caso, Judas, o pérfido traidor. Tendo este manuscrito diante de nós, compreendemos melhor a cólera de Ireneu de Lyon para quem esta interpretação da relação entre Judas e Jesus é insultuosa e herética!”
Dentro de alguns meses, a publicação científica do manuscrito com fotografias de cada página, permitirá aos investigadores de todo o mundo debruçarem-se sobre este texto. Rodolphe Kasser espera que a confrontação com outros textos gnósticos possa trazer novas informações. E conclui com humor: “o escriba que escreveu o “Evangelho de Judas” sabia que um tal título provocaria escândalo!” Mas ignorava sem dúvida que a sua provocação despertaria ainda a curiosidade do século XX…
Sophie LAURANT
- Para saber mais sobre o assunto não perca o suplemento “Sciences et éthique” do “La Croix” de 11 de Abril.
- A ler também no sitio do Monde de la Bible: “Os melhores gnósticos criadores de Evangelhos” por Jean-Daniel Dubois, professor de cristianismo antigo, director de estudos na Escola prática de Altos Estudos, em Paris.
É estranho que Judas seja “notícia” na actualidade. No entanto, o célebre editor americano National Geographic Society não hesitou, no dia 6 de Abril, em tornar pública uma informação perturbadora: a tradução de um texto que se intitula “evangelho”, redigido provavelmente em meados do século II da nossa era, e assinado com o nome de Judas, o discípulo que traiu Jesus. Este texto está de ora em diante acessível, em língua inglesa (neste momento).
Numa conversa exclusiva, concedida ao La Croix e ao Monde de la Bible, o professor Rodolphe Kasser, titular honorário da cadeira de coptologia da Universidade de Genève, que traduziu o manuscrito do copta não esconde a sua emoção: “foi para mim um choque quando, em 2001, tomei contacto com este manuscrito que julgávamos irremediavelmente perdido, uma vez que conhecíamos a sua existência através de uma menção do bispo Ireneu de Lyon (130-202 d. C.) que se indigna contra este texto! De qualquer modo, é extremamente raro encontrar um manuscrito de um tratado tão antigo. E este é notavelmente completo: temos três quartos do texto.”
O apóstolo referido como traidor, que viveu na Palestina no início do século I e de quem os evangelhos contam ter vendido Jesus por trinta moedas, terá escrito para justificar a sua traição? O seu papel na Paixão – nefasto mas essencial – sempre intrigou: porque é que ele indica Jesus aos seus carrascos beijando-o? Porquê, pouco tempo depois, fica com remorsos, deita fora o dinheiro e se enforca?
Um documento de um interesse excepcional
Este novo manuscrito poderá modificar a nossa visão dos Evangelhos? Estas questões fazem sorrir Rodolphe Kasser: “Sim, de algum modo a figura de Judas é “reabilitada” neste texto, porque o seu papel negativo encontra uma explicação positiva. Mas convém dizer e repetir que se trata de uma interpretação posterior imaginada no século II d. C. Não se encontra aqui nenhuma informação histórica nova sobre o verdadeiro Judas Iscariotes”.
Isso não impede que este “Evangelho de Judas” tenha um interesse extraordinário para melhor compreender os inícios do cristianismo, que se vai desenvolvendo mais ou menos clandestinamente no Império romano, a par de outras correntes religiosas. Para Rodolphe Kasser, de facto, se este texto foi redigido em grego (depois traduzido em copta) num meio já muito familiar do cristianismo, releva no entanto claramente de um outro movimento religioso: a “gnose”, que em grego significa “conhecimento”. Trata-se de um tipo de religião ou filosofia esotérica composta de inúmeras seitas, que se desenvolveu entre o segundo e o quarto século d. C. no Império romano.
Constituídos por pequenos grupos de iniciados, os gnósticos, inspirados por algumas ideias filosóficas gregas e pelas Escrituras bíblicas, reinterpretavam o cristianismo à sua maneira. Pensavam que o verdadeiro Deus era incognoscível e incriado “exterior à matéria”. Estava disfarçado aos olhos dos homens num deus inferior malfazejo, criador do mundo, o deus bíblico. Para os gnósticos, o mundo é pois um lugar infestado pelo mal, as trevas e o pecado, onde se adora um usurpador. Seriam apenas “eleitos”, salvos, aqueles que escapassem a esta fraude e aguardassem a perfeição através da iniciação a práticas, a palavras de tipo mágico. Esses alcançariam a luz, o verdadeiro Deus após um percurso difícil. Seria inútil tentar converter outros, ou reproduzir-se, porque o mundo caminha no seu conjunto para a perdição…
Compreender melhor o movimento gnóstico
Esta visão tão pessimista entrava em total contradição com a mensagem de salvação universal dos primeiros missionários cristãos! A Igreja, depois de 313 – data em que o culto cristão é autorizado com benevolência pelo Império romano – afastou logicamente, do cânon bíblico, os inúmeros textos gnósticos, e outros com carácter demasiado legendário. Ficam a ser conhecidos com o nome de “apócrifos”, isto é “ocultos”…
Os manuscritos destes textos desapareceram pouco a pouco, vítimas de campanhas de destruição, do esquecimento dos homens ou do desgaste do tempo. O movimento gnóstico chegou ao nosso conhecimento sobretudo através dos argumentos desenvolvidos contra ele pelos teólogos da época, em textos de controvérsias. Daí a importância do “Evangelho de Judas”, que abre um acesso directo a este pensamento e ajudará a melhor compreender as respostas dos cristãos desse tempo.
A narrativa desenvolvida no “Evangelho de Judas”, começa por mostrar Jesus a encontrar-se com os seus discípulos para preparar a Páscoa. Jesus faz troça deles e explica que celebrar a eucaristia é inútil! “Procura instruí-los nas ideias gnósticas, mas verifica, explica Rodolphe Kasser, que eles são demasiado estúpidos para compreender isso. Excepto Judas, que os outros detestam mas a quem Jesus tem especial afeição”. Jesus, no final de um longo diálogo em que o inicia e interpreta os seus sonhos, pede directamente a Judas para o entregar às autoridades a fim de se libertar do seu corpo material e regressar à luz.
“O escriba sabia que um tal título provocaria o escândalo!”
E a narrativa termina sobriamente no encontro de Judas com os Judeus que procuram Jesus. “O autor dirige-se a um público que conhece os evangelhos e ao mesmo tempo, o seu objectivo é revelar-lhe o seu “verdadeiro” sentido, revela o especialista. Os gnósticos sempre gostaram de “retomar” personagens que simbolizam o mal ou a ambiguidade na Bíblia, como Caim, o primeiro criminoso; o rei Herodes que massacra os meninos inocentes; ou ainda Tomé, o discípulo incrédulo; e, neste caso, Judas, o pérfido traidor. Tendo este manuscrito diante de nós, compreendemos melhor a cólera de Ireneu de Lyon para quem esta interpretação da relação entre Judas e Jesus é insultuosa e herética!”
Dentro de alguns meses, a publicação científica do manuscrito com fotografias de cada página, permitirá aos investigadores de todo o mundo debruçarem-se sobre este texto. Rodolphe Kasser espera que a confrontação com outros textos gnósticos possa trazer novas informações. E conclui com humor: “o escriba que escreveu o “Evangelho de Judas” sabia que um tal título provocaria escândalo!” Mas ignorava sem dúvida que a sua provocação despertaria ainda a curiosidade do século XX…
Sophie LAURANT
- Para saber mais sobre o assunto não perca o suplemento “Sciences et éthique” do “La Croix” de 11 de Abril.
- A ler também no sitio do Monde de la Bible: “Os melhores gnósticos criadores de Evangelhos” por Jean-Daniel Dubois, professor de cristianismo antigo, director de estudos na Escola prática de Altos Estudos, em Paris.
A descoberta do Evangelho de Judas é um grande achado arqueológico e espero que os religiosos entendam isso. A Última Tentação de Cristo, A Paixão de Cristo, e o Código da Vinci foram duramente atacados pelas igrejas. Agora é diferente. Não se trata de um filme ou de um livro. É um documento verídico.
ResponderEliminarEssa vai dar muita polêmica!
Um abraço
Marco Aurélio