2007-03-24

50º Aniversário do Tratado de Roma

Amanhã, dia 25 de Março, comemoramos os 50 anos da União Europeia.
Uma das questões importantes diz respeito à herança cristã na UE.
Qual é a relação entre a UE e o Cristianismo?
O meu confrade Ignace Berten tem abordado numerosas vezes questões referentes aos valores e à identidade europeia. Concordo com o que ele diz neste artigo, mas convido os meus caros amigos a reagirem ao que ele escreve.
Boa celebração dos 50 anos deste projecto fantástico que é a União Europeia.
Frei Eugénio

A herança cristã na União Europeia
Ignace Berten

Que relação existe entre a União Europeia e o cristianismo?
A civilização cristã impregna o nosso continente que é culturalmente diferente do espaço asiático, por exemplo. Esta diferenciação sugere uma homogeneidade que, contudo, é preciso matizar. O cristianismo europeu está marcado por uma profunda diferença interna: a tradição latina (ou latino-germânica) ocidental e a tradição ortodoxa ou bizantina e eslava oriental. O conjunto ocidental é, ele próprio, caracterizado pelo Iluminismo, produto do cristianismo e, em algumas manifestações, expressão do seu repúdio: esta sociedade é o fruto ao mesmo tempo do cristianismo e da vontade de libertação para com o domínio das Igrejas que, pela sua intolerância, conduziram às guerras de religião.

1.Nomear a herança cristã?
Para uma grande parte da Europa, o cristianismo foi a matriz da cultura durante mais de mil anos: herdávamos os valores veiculados por essa cultura. Não o reconhecer é acto de má fé. Mas querer definir a identidade europeia a partir dessa herança é negar que, alguns valores constitutivos da nossa sociedade – a afirmação dos Direitos Humanos, a liberdade de opinião e de consciência, a democracia – tiveram de ser conquistados contra a Igreja Católica, ainda que hoje reconheçamos a sua sintonia com a ética cristã.
Após ásperas controvérsias, o preâmbulo do projecto de Tratado Constitucional não nomeia as raízes cristãs da Europa. Refere-se sobriamente às “heranças culturais, religiosas e humanistas da Europa”. Devemos alegrar-nos com isso ou lamentá-lo? O meu lamento incide sobre o carácter apaixonado da controvérsia, de uma e de outra parte...
Pela primeira vez nos tratados europeus, a Carta dos Direitos Fundamentais e a Constituição declaram fortemente os valores fundamentais sobre cuja base a União se pretende construir. Esses valores que se ali declaram estão em profunda harmonia com aqueles de que a tradição cristã é portadora. Mais, o próprio conceito de pessoa, fortemente afirmado nesses textos, é uma invenção da teologia cristã; e, quando se afirma como objectivo o bem de todos, “inclusive dos mais frágeis e dos mais carenciados”, esta expressão é um eco evidente da tradição evangélica.

2.Fazer viver a herança cristã
Quer nomeemos ou não as raízes cristãs nos nossos textos constitucionais, o essencial para nós, Igrejas, é fazer viver a herança de que somos os primeiros depositários e que explicitamente reivindicamos.
Esta exigência implica três coisas.
Em primeiro lugar, nós proclamamos valores e dizemos que o Evangelho é para nós a referência. Temos que interrogar-nos permanentemente, de uma forma pessoal enquanto crentes, na nossa vida familiar e relacional, mas também na nossa responsabilidade social ou política, perguntando-nos se somos testemunhas visíveis desses valores que afirmamos e do seu equilíbrio e complementaridade de conjunto: podem defender-se certos valores, no limite da intolerância, negligenciando totalmente outros. Temos também que nos interrogar como comunidades cristãs e como instituição de Igreja: as nossas maneiras de ser e de agir são um verdadeiro testemunho dos valores que declaramos?
Depois, temos que exercer uma função permanente de vigilância evangélica: os textos declaram valores, mas é preciso ainda que as políticas reais sejam a expressão e a aplicação desses valores e que não venham contradizê-los nos factos. Desse ponto de vista, o primado concedido à economia como regra de direito no conjunto dos nossos tratados deixa o social e, portanto, a solidariedade real em situação estrutural de fragilidade: torna-se assim impossível fazer valer o direito ao princípio do “bem de todos os seus habitantes, inclusive dos mais frágeis e dos mais carenciados”. Temos que nos comprometer para refazer o equilíbrio.
Por fim, não basta declarar valores, é preciso também determinar o seu conteúdo. Isso é particularmente verdadeiro no que diz respeito à dignidade humana: como cristãos e como Igrejas, temos de participar activamente no debate da sociedade a fim de determinar colectiva e politicamente as exigências da dignidade humana no respeito do pluralismo, quer dizer, aceitando que, até um certo ponto, possa legitimamente haver diferentes concepções dessa dignidade.
Traduzido por José Victor Adragão. O original, em francês, foi publicado no jornal belga “Libré Belgique”, no dia 20 de Março de 2007, p.23.

2 comentários:

  1. O artigo "A herança cristã na União Europeia" de
    Ignace Berten, é uma reflexão importante, que toca num assunto que tem sido mal discutido. Independentemente da questão religiosa, as actuais sociedades seculares europeias, estão, em termos culturais e sociológicos, imbuídas de um passado cristão que é impossível negar. A secularização da Europa, surgiu, historicamente num processo complexo de rejeicção/interacção/acomodação com o Cristianismo. Idelogias políticas e valores que surgiram na Europa e Ocidente, como os Direitos Humanos, foram, desde o início, concebidos como universalistas, porque foram construídos sobre um matriz cultural religiosa universalista, herdada do Cristianismo. Não perceber isto é não perceber a Europa.

    PS. Agradeço divulgação do "Acutilante" feita no "Regador" (um nome muito engraçado para um Blog). Os meus parabéns pela vossa entrada Blogosfera.

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  2. Com autorização do meu irmão Manuel, transcrevo a resposta dele ao Frei Eugénio:

    Caro Eugénio
    Um artigo tanto mais notável quanto breve - como pontos precisos para meditação. Ao princípio, achei que a «herança religiosa» deveria incluir «nomeadamente a cristã», que não tem culpa dos exageros de «partidos religiosos», e que não só recupera os valores de Grécia e Roma como lhes corrige o elitismo e a apologia da violência - uma e outra coisa grandes demolidores da autêntica democracia; também é responsável (o cristianismo) pela distinção entre palavras e factos no rigoroso domínio de religiões de estado, incluindo o judaismo, e pondo em cheque os futuros conluios entre elites cristãs e poder económico e político. Se não houvesse o perigo de fundamentalismos ou entusiasmos «partidários», podia mencionar-se o cristianismo. Mas, dentro das «modalidades» de cristianismo, tem-se gerado um verdadeiro «culto do partido», em que Jesus Cristo nunca pode estar «inteiro», e muitas vezes é exigida estrita obediência ao partido, talvez mais vincadamente no «partido dos católicos» ou mais exactamente no «partido do Vaticano». Por isso, é muito mais sensato referir apenas «valores religiosos», tanto mais que o ecumenismo é um valor sine qua non de uma religião honesta para com o ser humano e com Deus (que «não tem nome»...). Aliás, cada vez mais se encontram valores e conceitos de outras religiões na génese do judaísmo e do cristianismo.
    Resta-me desafiar o autor e muita gente a debater os valores, sem o quê o valor não se conjuga com a liberdade humana, atendendo ao princípio: «fé sem medo da razão e razão sem medo da fé». E sem medo dos poderosos na política e na economia...
    PEDIDO: Não consigo arranjar aqui o relatório da PLATFORM INTERNATIONAL FREEDOM OF RELIGION AND BELIEF, The Hague, julho 2005 (ed. Justitia et Pax Netherlands) com o título: FREEDOM OF RELIGION IN THE NEW EUROPE - report.
    Consegues arranjar-mo?
    Abraço amigo. Manuel

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