2007-10-19

Evangelho do XXIX Domingo

2007.10.21
LITURGIA PAGÃ
Pagão provém do latim pagus = marco de terreno, aldeia,
por oposição à cultura citadina. O radical indo-europeu pak (donde pau) designa a união, estabilidade e a força próprias de Pacto e Paz.
Página também deriva do mesmo étimo, significando originalmente
campo lavrado em esquadria respeitando um marco («pau») bem fixo,
ao que se assemelha uma folha de papel escrita.
Liturgia deriva do grego laos (povo, leigo) e ergon (trabalho),
donde «serviço público».
Liturgia pagã é o esforço de trabalhar com Deus
com a liberdade, consciência e humildade de ser «pagão».
29º Domingo do tempo comum (ano C)
1ª leitura: Livro do Êxodo, 17, 8-13
2ª leitura: 2ª Carta de S. Paulo a Timóteo, 3, 14- 4, 2
Evangelho: S. Lucas, 18, 1-8
Muito custa levantar as mãos!
Não é verdade que as deixamos caídas, demasiadas vezes? Seja por preguiça, seja porque achamos que não vale a pena fazer nada… Outras vezes porque nos sentimos sós, sem alguém que nos anime a levantar os braços.
Também custa dar um sentido aos textos de hoje. Na 1ª leitura, Moisés sobe à montanha para rezar a Deus pela vitória dos Israelitas que combatiam perto do monte. E só enquanto tinha as mãos erguidas, é que os Israelitas venciam. Foi preciso que os companheiros lhe sustentassem os braços. Só assim Israel derrotou os inimigos.
Jesus Cristo conta a história da viúva injustiçada por um juíz iníquo, mas que tanto e tanto importunou o juíz que este, para se ver livre dela, lhe deu um despacho favorável. E Jesus de concluir: se um mau juíz se rende à persistência de uma injustiçada, «Deus não havia de fazer justiça aos seus eleitos que por ele clamam dia e noite?»
Na linha da primeira leitura, é estranho como a humanidade tem levado tanto tempo a deixar de ver em Deus um parceiro das suas políticas de destruição (dos outros, e dos próprios por tabela). Ainda hoje facilmente vestimos Deus com as bandeiras nacionais.
Quanto ao evangelho, não é verdade que Deus parece tão longe das nossas orações, daquelas mais desinteressadas, pela paz, pelo amor entre os homens – como Jesus queria mais que tudo? Não é verdade que nos sentimos oprimidos pelo silêncio de Deus? A última pergunta de Jesus também inquieta: «Mas quando voltar o Filho do homem, encontrará fé sobre a terra?»
Desta vez, é S. Paulo que parece falar mais claro: «Proclama a palavra, insiste a propósito e fora de propósito, argumenta, ameaça e exorta, com toda a paciência e doutrina». As mãos que trabalham são as mãos que rezam, dizer a verdade já é vencer – mas mesmo aqui, não basta o saber, é preciso muita paciência. E só é muito paciente quem tem fé «como um grão de mostarda» (cfr. o domingo passado), tão pequenino mas com tanta energia que produz um arbusto frondoso.
A oração é o acto humano mais presente na espiritualidade de todos os tempos e religiões. É aquele que mais pode dignificar o ser humano, proporcionando a união com Deus.
A oração é de tal maneira tema central na Bíblia, que esta perde o seu sentido se não é lida com espírito de oração. Com efeito, toda a Bíblia é a oração de um povo que tanto foge como procura o Deus de todas as horas, sem saber como levar uma vida humana à mistura com uma experiência do divino – uma experiência difícil de ser pensada, e ainda mais difícil de traduzir na nossa vida em que se misturam guerras, crimes, amores e poesia. «As Escrituras podem dar-te sabedoria», diz S. Paulo na 2ª leitura: «podem», não dão automaticamente, porque é preciso lê-las com vontade de um encontro com Deus. Lendo hoje os passos estranhos do Antigo Testamento, lemos a nossa própria história, de cada um de nós e de toda a humanidade: como é que nos temos havido com o Deus que se quer juntar a nós, sem violentar a nossa liberdade e jogando com todo o tipo das nossas limitações?
Justamente, uma das grandes limitações é o cansaço, que nos faz perder a esperança. Talvez seja esse o sentido da pergunta de Jesus: será que nós mantemos a nossa fé, apesar do silêncio de Deus, por muito que Ele prometa que nos ouve? Quantas gerações inteiras morrem sem gozar, aparentemente, da experiência da paz e da justiça? Onde está a resposta de Deus? Será mesmo verdade que «Deus dá o frio conforme a roupa»?
Não sou eu quem se atreve a responder. Mas não posso deixar de pensar que esse Jesus do evangelho é o mesmo que morreu sem sequer sentir a lealdade dos apóstolos; e na cruz, no meio da dor e do ódio dos seus inimigos, não gritou ele: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?»
É a mesma pessoa que nos fala de um Pai que nos quer bem como nenhum pai consegue querer; e que Lhe devemos pedir a justiça e tudo o que é bom, sem nos cansarmos de pedir.
Quando já não temos forças para levantar as mãos, temos o estímulo e o apoio dos nossos irmãos. Mesmo a nível político, ambiental, afectivo, há muito que fazer para nos sentirmos bem e mais saudáveis, justamente porque saímos da rotina que nos impede a dimensão divina, a dimensão da nossa «salvação» de todo o stress e maldade.
Talvez seja uma lição de Moisés: também há «técnicas» para nos mantermos atentos a uma visão do mundo menos parcelar ou egoísta e mais capaz de englobar a incómoda diversidade das posições humanas. A «Liturgia das Horas» refere esta dimensão ecuménica: em todo o momento, em todo o mundo, há sempre alguém a levantar as mãos para Deus, «tendo esperança contra toda a esperança». Sobretudo nos grandes momentos da vida, a oração, mesmo só do ponto de vista psicológico, concentra toda a energia espiritual, aumentando a própria resistência corporal. Mas, mais do que isso, dá-nos um pouco da perspectiva divina, só ela capaz de dar sentido ao que parece sem sentido. Só ela capaz de nos fazer sentir «filhos», por muito que o Pai pareça ausente.
Até gostaria de terminar com o meu «Padre Nosso aldrabado:
Acreditamos que és nosso Pai, e por isso te louvamos, reconhecendo que só tu és perfeitamente bom, e lutamos para que reines sobre a terra, não à nossa maneira, mas à tua maneira, embora frequentemente não percebamos o que isso quer dizer; ajuda o nosso trabalho para viver esta vida que nos deste, em que tentamos ser bons para todos (sem pôr de lado a justiça, embora imperfeita, e cientes de que temos muito a perdoar uns aos outros); anima-nos a lutar para que não falte a ninguém o essencial para subsistir e se poder lançar na vida; quando a gente se distrai, não te escondas muito e aumenta a nossa sagacidade e coragem para escolher o bem.
MANUEL ALTE DA VEIGA
m.alteveiga@netcabo.pt

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