2007-11-23

VIVA o EVANGELHO de Domingo, 25 de Novembro

Lc. 23,35-43.
O povo permanecia ali, a observar; e os chefes zombavam, dizendo:
«Salvou os outros; salve-se a si mesmo, se é o Messias de Deus, o Eleito.»
Os soldados também troçavam dele. Aproximando-se para lhe oferecerem vinagre, diziam:
«Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo!»
E por cima dele havia uma inscrição:
«Este é o rei dos judeus.»
Ora, um dos malfeitores que tinham sido crucificados insultava-o, dizendo:
«Não és Tu o Messias? Salva-te a ti mesmo e a nós também.»
Mas o outro, tomando a palavra, repreendeu-o:
«Nem sequer temes a Deus, tu que sofres o mesmo suplício? Quanto a nós, fez-se justiça, pois recebemos o castigo que as nossas acções mereciam; mas Ele nada praticou de condenável.» E acrescentou:
«Jesus, lembra-te de mim, quando estiveres no teu Reino.»
Jesus respondeu-lhe:
«Em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso

1 comentário:

  1. «Caras ou coroas?»
    Nunca foi destronado porque nunca teve trono algum – e para quem o queria seguir, falou claramente: «as raposas têm covas e as aves têm ninhos, mas «o filho do homem» não tem onde reclinar a cabeça» (Mateus, 8,20). Coroa, sim, mas de espinhos, e até essa por desprezo e brincadeira maldosa (segundo Mateus e Marcos). Só o letreiro da cruz (ironicamente?) referia o título de «Rei dos Judeus» (evangelho) – o que, aliás, provocou uma acesa indignação por parte dos «príncipes da Igreja» desse povo (evangelho de S. João).
    Outra ironia: foram também os «príncipes da Igreja», mas desta vez da própria Igreja que se diz seguidora de Jesus, quem batalhou por um reino terreno, com tronos, coroas e luxo esplendorosos, com a desculpa de que devia «ser na terra como no céu». É caso para perguntar: será que no céu há tanto luxo e exibição de poder? O evangelista S. João até sublinha que a Deus ninguém o viu (1, 18; 5, 17-30). O pior é que se «perdeu o sal» (Mateus,5,13) que dava sentido às palavras de Jesus, quando afirmou que era «rei», justamente nos momentos mais humilhantes e dolorosos da sua paixão.
    Curiosamente, só o «ano litúrgico A» (o primeiro de um ciclo ternário) apresenta Jesus Cristo como o grande Rei e Juiz, no seu trono glorioso, a condenar eternamente aqueles que não se preocuparam com o bem comum ou não ajudaram quem precisava de ajuda; e a premiar os que dedicaram a vida a fazer o bem, convidando-os a participar da eterna alegria do seu reino (S. Mateus, 25, 31-46). No relato de S. Lucas, há sangue nas palavras de testemunho e até a promessa de entrada no «reino de Deus» dá-se entre dois crucificados.
    Ele é Rei «a sério», precisamente porque nada tem a ver com os reis das nações (por muito «a sério» que sejam): apresenta-se como um rei sem trono, sem súbditos, sem soldados, sem jogadas políticas, sem corpo diplomático...
    O evangelista S. João descreve assim o diálogo de Pilatos com Jesus: «É como dizes: Eu sou rei! Para isso nasci e vim ao mundo, para dar testemunho da Verdade». Interessante associação entre rei e verdade. «Rei» e «reger» (como «regra, recto, erigir, surgir, ressurgir», etc.) têm a mesma etimologia, cuja ideia geral é «dirigir» na «direcção» «correcta» (três palavras com a mesma etimologia). «Reger» é primordialmente um acto religioso, na história das ideias: o «rei» é a encarnação daquilo que está bem – é mais um sacerdote do que um soberano, porque está em ligação íntima com a fonte da autoridade, que é divina. Ele é rei porque é «o caminho, a verdade e a vida» (S. João, 14, 6). No seu reino, que é o reino de Deus, não há servos e muito menos escravos. E justamente por isso, a grande característica da pertença a esse reino é sabermos servir os outros.
    Na 2ª leitura, S. Paulo reflecte a cultura do tempo, que via todos os poderes visíveis e invisíveis e todas as forças celestes sujeitas a Deus e colaborando no governo do universo. Cristo como o Princípio de toda a Criação e o Princípio da Ressurreição ou Redentor, é o Rei-Sacerdote que garante a unidade e a paz entre todas as coisas. «Os Tronos e as Dominações, os Poderes e as Autoridades, todas as coisas foram criadas por Ele e para Ele». Esta linguagem solene refere a absoluta realeza de Deus, da qual a realeza ou qualquer outra manifestação de autoridade humana é apenas uma sombra ou prenúncio.
    O Novo Testamento considera que todas as figuras e aventuras do Antigo Testamento são a «pedagogia» de Deus, preparando um povo para compreender melhor a extraordinária natureza do seu plano de aliança com a Humanidade. É este o sentido da primeira leitura, apresentando David como pastor e rei de Israel. Como disse Jesus aos desolados Discípulos de Emaús: «Ó homens sem inteligência e lentos de espírito para crerem em tudo quanto os profetas anunciaram! Não tinha o Messias de sofrer essas coisas para entrar na sua glória?» (S. Lucas, 24, 25-27).
    Pena é que, ao longo dos séculos, muitos cristãos e até muitos dos mais altos representantes da sua Igreja pareçam ter utilizado as palavras de S. Paulo para construirem riquíssimos e impressionantes “tronos”, como “príncipes” exercendo a mais rigorosa (quando não cruel) “dominação” sobre as consciências, cultura e civilizações, utilizando até forças militares, e jogando habilmente com os “poderes” da terra, negando assim o sentido criador da “Autoridade”! Foi gente que no jogo «caras ou coroas» preferiu perder a cara para se gabar da coroa.
    Apesar de tudo, pelos milénios fora, milhões de mulheres e homens se deixam surpreender por esse Jesus, que se afirmou como Rei justamente quando estava a ser torturado e condenado à morte – mais exactamente ainda, lembrando a promessa de Jesus ao bom ladrão: só é Rei depois da sua morte. Porque é preciso passar pelo sofrimento total para ter a autoridade de falar sobre a alegria total.
    Amou, gozou, sofreu e morreu, como qualquer um de nós. E por isso, a sua ressurreição revelou o sentido da própria morte, como “passagem” (ou “rito pascal”) de uma vida de horizontes estreitos para a vida da Sabedoria perfeita – aquela Sabedoria que brincava sobre a superfície da Terra, e tinha o seu maior prazer convivendo com os seres humanos» (como se lê no poema do Livro dos Provérbios, 8, 22-36).
    O mistério central do Cristianismo é a revelação de Deus no comum e frágil ser humano que era Jesus. Não é o mistério de um rei ou de um reino: já se poderá dizer que é o mistério da subversão dos variadíssimos reinos que nós construímos sem respeitar a «dignidade real» de cada ser humano.
    «Caras ou coroas?» Jesus deu a cara.

    MANUEL ALTE DA VEIGA
    m.alteveiga@netcabo.pt

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