2011-03-15

Guerra Colonial: 50 anos


Mensagem do Frei Eugénio nos 50 anos do início da Guerra Colonial em Angola (15.03.1961), que viveu por dentro como Fuzileiro


GUERRA: ONDE OS CONTRA-VALORES SE APRESENTAM COMO VALORES
 
A minha comissão em Angola como oficial de Marinha fuzileiro especial, foi de 1963 a 65 e quase toda passada nas fronteiras, no rio Zaire e em Cabinda.

A meio da comissão, tive que ficar a comandar o meu Destacamento e a ter que lidar com os Serviços de Informações Militares, a colaborar com a PIDE, a tratar de questões com informadores e refugiados no outro lado das fronteiras e a participar em reuniões operacionais a um nível que habitualmente se tinha quando se era comandante de batalhão.

Aos 25 anos “entrei” na podridão da guerra. Foi um choque tremendo!

Não era a guerra das operações militares, a guerra dos tiros, bazucadas e morteiros. Era a “guerra” que estava por trás, onde não há escrúpulos, nem regras morais de qualquer espécie.

A tortura mexeu muito comigo.

Descobri que nas guerras modernas de guerrilhas são as populações civis que mais sofrem e vivem numa insegurança constante.

Descobri que as guerras criam uma situação em grande escala, onde os contra-valores se apresentam como valores.

Viver assim é viver no verdadeiro inferno, onde a Historia se faz com

guerras e destruições sucessivas. É a espiral da violência como motor da História.

Foi no meu meio deste “quadro” que dentro de mim surgiu a convicção de que esse Deus que nunca ninguém viu, era mesmo Pai, como Jesus de Nazaré veio dizer.

Foi esta presença de Deus que passei a reconhecer que é Pai de cada um e de todos, violentos e violentados, que deu uma orientação nova à minha vida.

Descobri ainda que a maioria das pessoas que encontrava, militares e civis, mesmo os que se diziam crentes, no fundo de si mesmos tinham um grande receio de Deus, muito poderoso e distante, cuja protecção desejavam mas na qual acabavam por pouco confiar.

Senti-me impelido então a trocar as armas de guerra pelas armas de paz.

Mas sendo eu oficial de carreira, em plena guerra colonial era
praticamente impossível sair da Marinha a não ser por motivos médicos muito graves. Ora saúde tinha eu!

Se pude trocar a farda branca e azul da Marinha pelo hábito branco e

preto dos frades pregadores, foi graças a uma série de circunstâncias e de ajudas imprevisíveis. A coisas acontecem como Deus quer e quando Deus quer. Ontem, hoje e amanhã.

Muitos vieram do Ultramar com grandes traumas e eu também trouxe um pesadelo que me acompanhou durante muitos anos. Mas dou graças a Deus que me permitiu desenvolver até hoje a capacidade de me indignar e de ser persistente em causas consideradas perdidas ou que abalam as normas estabelecidas. Quando uma causa é inspirada por Deus e o homem se empenha nela, Ele próprio abre as portas ou deita abaixo os muros.

A paz, supremo Bem, não se constrói com guerras, sejam elas militares, económicas, religiosas, politicas ou culturais, mas apenas com as” armas” de Jesus concretizadas em gestos de PAZ.

Frei Eugénio Paiva Boléo, OP



13 comentários:

  1. É comovente o testemunho de uma pessoa tão generosa como Eugénio.

    Envolvido numa guerra cujas raízes fundamentais advinham da ausência de democracia no seu sentido mais lato - e cuja essência se interpenetra com os princípios de fraternidade e de igualdade que os cristãos dão a conhecer como sendo os seus - cedo verificou não poder trilhar o caminho da violência, optando então por causas em que viria a mostrar a sua dedicação aos outros.

    As guerras entre os seres humanos são sempre degradantes, e só com o aumento do conhecimento e do saber é que poderão ser extirpadas.

    Faço votos por que Eugénio continue no caminho que escolheu, pois dada a dolorosa experiência que viveu e que tão bem relata estará melhor ciente e preparado que muitos outros que da vida real apenas conhecem suaves caminhos.

    Luís

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  2. Obrigado pela tua mensagem que também me fez reviver esses anos no Norte de Angola!

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  3. Caro Frei Eugénio

    Como participante involuntário nessa guerra em que também estive, como médico, em Moçambique, não posso, como nos anteriores comentários, deixar de lhe agradecer a mensagem de coragem cristã que quis assumir e que nos leva a pensar que quando queremos fazer a vontade Deus, Ele está connosco.

    A esta distância e já o escrevi uma vez, numa carta que dirigi a Jesus e de que talvez ainda se lembre, tenho a certeza de que Ele esteve sempre comigo nesses momentos apesar de, na altura, não ter consciência da sua presença pois a minha pobre educação cristã ainda não me tinha permitido perceber o quanto Ele me protegia. Hoje tenho a certeza de que Ele verdadeiramente caminhou comigo ao colo nesses tempos e preparou-me para descobertas maravilhosas que também a si devo e muito.

    Posso por isso dizer que Deus ao propor-lhe o desafio que nos relatou preparou o caminho de muitos que o vieram a conhecer e que consigo tem percorrido caminhos de verdadeira felicidade e encontro que antecipam o momento em que teremos a graça de O ver frente a frente.

    Os anos que passei em Moçambique permitiram-me aprender muito do dom da partilha, partilha de bens materiais, mas também espirituais, e penso mesmo que o bem que, em algumas situações que hoje recordo com saudade, consegui fazer foram caminhos que Jesus me mostrou para eu decidir se o queria seguir ou não. E não tendo consciência disso, como disse, não deixei de guardar no coração esses momentos que mais tarde Jesus me fez lembrar para me permitir perceber que são os meus actos, os meus pensamentos, as minhas mãos que, guiadas por Ele, me vão preparando o caminho para a verdadeira Vida que espero um dia alcançar. E dessa não duvido e é nessa Fé e Esperança que me apoio para vencer as dificuldades, os desafios e as derrotas com que a vida me confronta.

    Hoje vi partir um grande amigo, um verdadeiro homem de Deus e senti que com ele partia um pouco de mim, das minhas recordações dos muito bons momentos que vivemos juntos. As minhas emoções cederam nesse momento, os meus olhos choraram, mas no meu coração, no local onde me encontro com Jesus, vivo com alegria por saber que esse amigo passeia já nos verdes prados que o Senhor nos prepara para a nossa chegada ao seu Reino. E é esta caminhada que tenho feito consigo e que Deus me permitiu ao fazer-me passar por experiências difíceis mas em que a Sua presença foi constante, que me levam a deitar à noite e adormecer agradecendo-lhe o dia passado, pedindo-lhe a protecção na noite que vou viver e, finalmente, acordar (um dia na Sua presença) e dizer-lhe obrigado Senhor pela noite que passei e pela esperança do novo dia para que me fizeste acordar e em que tenho a certeza de que vou poder caminhar conTigo.
    Bem-haja Frei Eugénio pela sua presença na minha vida, presença que me fez descobrir Jesus.

    Hugo

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  4. O testemunho do frei Eugénio mostra-nos como com Jesus, das situações mais negras de violência e mentira podem nascer tantas coisas bonitas e projectos de amor aos outros. Obrigado.

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  5. A mensagem diz muito dizendo pouco. Quem fez a guerra com dignidade merece homenagem que só é possível estando-se informado.

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  6. Frei Eugénio Obrigado por partilhar essa experiência tão importante, forte e profunda.

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  7. Li a tua mensagem. Também acho que a Paz é um bem inestimável, mas penso que não aceitaria uma Paz “a qualquer preço”, numa perspectiva de pacifismo. Isto conduz-me ao conceito de guerra justa. Aqui, as interpretações dividem-se...
    NC

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  8. Tem toda a razão, Eugénio.
    Violência só gera violência.
    Não se constroi a paz com violência.
    Muito obrigado pelo testemunho pessoal e pela partilha.
    rc

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  9. O seu texto, Frei Eugénio, honra-o. Mas sobretudo confronta-nos com um passado, que se soubermos interpretar com verdade, nos ajudará a preparar o futuro. Um abraço

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  10. É bom vê-lo combater aqui e um privilégio partilhar a memória de outras lutas. Aliás, da guerra colonial é o testemunho mais próximo que tenho.
    armando

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  11. João P. Bastos23/3/11 18:52

    Caro Eugénio
    Comentando apenas o teu testemunho,vivido nas paragens por onde andámos,direi que foram duras experiencias cuja divulgação é necessária (apesar de dolorosa)para que se reflita e se recuse a vontade da sua repetição.Lamentavelmente não é isso que acontece!
    Um abraço amigo João P. Bastois

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  12. Meu caro Frei Eugénio.
    Não há acasos! Estás na moda no DJ e deixa-me felicitar-te pelo teu esclarecido ( ia dizer iluminado) texto, Sou o que na EN nos juntámos com o Roncon no saudoso pinheiro. Gostava de contactar contigo.
    Abraço
    AB

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  13. Sem querer encontrei este testemunho.
    Comoveu-me porque sou irmã do Eugénio, o meu irmão mais velho. Ele pouco nos contou da Guerra do Ultramar e menos ainda da sua vivência. Obrigada a quem publicou este testemunho. Não o posso elogiar porque sou irmã e gosto muito dele. Ele sabe.

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