2024-09-29

Diálogo com o Evangelho

Diálogo com o Evangelho do XXVI Domingo do Tempo Comum, 29 de setembro, por Frei Eugénio Boléo, no programa de rádio da RCF "Construir sur la roche". Pode ouvir aqui. (gravação não disponível)

 

 

EVANGELHO   (Mc 9, 38-48)

Naquele tempo, João disse a Jesus:
«Mestre, nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome
e procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco».
Jesus respondeu:
«Não o proibais; porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome
e depois dizer mal de Mim. Quem não é contra nós é por nós.
Quem vos der a beber um copo de água, por serdes de Cristo,
em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa.
Se alguém escandalizar algum destes pequeninos
que crêem em Mim, melhor seria para ele que lhe atassem ao pescoço
uma dessas mós movidas pró um jumento
e o lançassem ao mar.
Se a tua mão é para ti ocasião de escândalo, corta-a;
porque é melhor entrar mutilado na vida
do que ter as duas mãos e ir para a Geena,
para esse fogo que não se apaga.
E se o teu pé é para ti ocasião de escândalo, corta-o;
porque é melhor entrar coxo na vida
do que ter os dois pés e ser lançado na Geena.
E se um dos teus olhos é para ti ocasião de escândalo, deita-o fora;
porque é melhor entrar no reino de Deus só com um dos olhos
do que ter os dois olhos e ser lançado na Geena,
onde o verme não morre e o fogo não se apaga».

 

DIÁLOGO

O Evangelista Marcos continua a relatar-nos a etapa fundamental da vida de Jesus a caminho de Jerusalém, onde irá sofrer a Paixão e Crucifixão, às quais se seguirá a Ressurreição Pascal. Nesta etapa decisiva os discípulos continuam a manifestar uma grande incompreensão acerca das prioridades de Jesus na sua pregação.

No relato de hoje, o apóstolo João vai queixar-se a Jesus do sucesso de um homem que expulsava demónios em Seu nome, mas sem pertencer ao grupo. João fala em nome dos discípulos. Porque é que eles estão descontentes com o trabalho desse homem?

Esse homem estava a combater o mal, expulsando demónios, mas eles queriam impedi-lo.

Já no tempo de Moisés, Deus tinha partilhado o poder de profetizar de Moisés com 70 anciãos que se puseram a profetizar, mas isso não durou muito. Ora, dois homens que tinham ficado no acampamento, sem terem ido com os 70 anciãos também receberam o espírito e começaram a profetizar. Josué auxiliar de Moisés há muitos anos insiste em que ele os faça calar, o que Moisés recusa.

Também Jesus perante o apelo de João, diz aos discípulos: “Quem não é contra nós é por nós.” Se o homem tinha esse poder, é porque Deus lho tinha dado. Jesus quer que os seus discípulos tenham presente que o poder e a autoridade que tinham recebido vinha de Deus para fazerem a Sua Vontade.

Jesus deu-lhes poder para servirem o Reino de Deus. Não deviam desviar esse poder para os seus próprios interesses. A Igreja não é proprietária da força de salvação de Jesus. A Igreja deve estar atenta ao Espírito de Deus (Espírito Santo) que felizmente sopra onde quer, ultrapassando todas as fronteiras que lhe queiram impor.

O que é pedido aos discípulos é que reconheçam a obra de Deus, mesmo onde menos se espera. O Espírito que lhes é dado, inspira liberdade, imaginação e criatividade, que desconcerta e surpreende. Por isso, a graça de Deus não está confinada aos instrumentos que a Igreja utiliza, como os sacramentos, nem é monopólio daqueles nela têm funções hierárquicas.

Jesus diz a João e aos seus companheiros que aquele homem não deve ser impedido de expulsar demónios em Seu nome. Se esse homem pode expulsar o mal em Seu nome, é porque Deus lhe deu esse poder. Ou seja, Jesus quer que os discípulos compreendam que o Espírito não conhece fronteiras e não faz aceção de pessoas.

Jesus chama a atenção para a largueza do Reino de Deus, no qual todos podem participar na luta contra o mal e a exclusão.

Quem cria união e comunhão, sob todas as formas, está assim a colaborar com a construção do Reino.

Jesus quis que os seus discípulos formassem uma assembleia “católica”, que quer dizer, universal, onde cada um pode ter um lugar ativo.

Frei Eugénio, op (26.09.2021)


2024-09-15

Diálogo com o Evangelho

Diálogo com o Evangelho do XXIV Domingo do Tempo Comum, 15 de setembro, por Frei Eugénio Boléo, no programa de rádio da RCF "Construir sur la roche". Pode ouvir aqui. (gravado em setembro de 2021)

 

 

EVANGELHO   (Mc 8, 27-35)

Naquele tempo, Jesus partiu com os seus discípulos

para as povoações de Cesareia de Filipe.

No caminho, fez-lhes esta pergunta: «Quem dizem os homens que Eu sou?»

Eles responderam:

«Uns dizem João Baptista; outros, Elias; e outros, um dos profetas».

Jesus então perguntou-lhes: «E vós, quem dizeis que Eu sou?»

Pedro tomou a palavra e respondeu: «Tu és o Messias».

Ordenou-lhes então severamente que não falassem d’Ele a ninguém.

Depois, começou a ensinar-lhes

que o Filho do homem tinha de sofrer muito, de ser rejeitado pelos anciãos,

pelos sumos sacerdotes e pelos escribas;

de ser morto e ressuscitar três dias depois. E Jesus dizia-lhes claramente estas coisas.

Então, Pedro tomou-O à parte e começou a contestá-l’O.

Mas Jesus, voltando-Se e olhando para os discípulos, repreendeu Pedro, dizendo: «Vai-te, Satanás,

porque não compreendes as coisas de Deus, mas só as dos homens».

E, chamando a multidão com os seus discípulos, disse-lhes:

«Se alguém quiser seguir-Me, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me.

Na verdade, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á;

mas quem perder a vida, por causa de Mim e do Evangelho, salvá-la-á».

 

DIÁLOGO

Este diálogo de Jesus com os apóstolos é seguramente um dos mais importantes do NT. 

Passa-se numa ocasião decisiva da vida de Jesus, uns meses antes da sua morte.

Jesus perguntou primeiro aos seus discípulos:

“Qual é a opinião que as pessoas têm acerca de Mim?

Ao terem de responder sobre as várias opiniões populares,

os discípulos são levados por Jesus a refletir, eles também, sobre o que é que eles próprios pensam sobre quem é Jesus.

E a pergunta direta veio logo a seguir: “E para vocês, quem é que Eu sou?”

Pedro tomou a dianteira e respondeu: “Tu és o Messias”, isto é “o libertador do povo” que os judeus esperavam. Em grego: “Tu és o Cristo”.

Cristo é a tradução da palavra grega khristos que quer dizer ”Ungido” ou “Escolhido por Deus”.

Pedro deu uma resposta certíssima, mas faltava ver se ele compreendia bem o que é queriam dizer as palavras certas com que respondeu

Mas o diálogo não podia ficar por aqui.

Pedro podia estar muito satisfeito por ter acertado na resposta, mas o que ele entendia por “Messias”, por “Cristo”, por “Salvador prometido”, como vamos ver, era afinal o oposto do que Jesus entendia como sendo a missão que Deus-Pai lhe tinha dado como Messias.

Jesus começou então a apresentar aos discípulos, abertamente, o que lhe iria acontecer nos tempos que se iam seguir: os grandes sofrimentos, a rejeição por parte dos mais responsáveis, a condenação, a tortura e a morte e três dias depois a ressurreição, a vitória sobre a morte e o desamor.

Jesus ensinou-lhes que tais acontecimentos até à sua ressurreição, não eram uma fatalidade, mas um caminho incompreensível, que Deus-Pai queria que Ele seguisse.

Ora, Pedro, apesar da resposta certa que tinha dado, não conseguia aceitar que o “Messias-Salvador” fosse passar por tudo isso.

Esse cenário com fraqueza, rejeição e morte na cruz, não correspondia em nada à imagem que os judeus tinham do único Deus que seria enviado para salvar Israel.

As pessoas que esperavam que Deus castigasse os que que praticavam o mal e recompensasse os bons, não podiam aceitar a ideia de que o Enviado de Deus pudesse ser derrotado e morto.

Então, com o seu ímpeto habitual, Pedro chamou Jesus à parte, e cheio de amizade, repreendeu-o:

«Que conversa é essa Mestre? A partir de agora e, tendo em conta que és mesmo o Messias, não há inimigos que nos ponham as mãos em cima, a tua força do Alto vence-os a todos!”

Na sua lógica, o Messias tinha todo o poder de Deus para derrotar os inimigos, e por isso quer convencer Jesus a corrigir o caminho que lhes tinha anunciado que ia seguir.

Como é que Jesus respondeu a esta iniciativa de Pedro?

”Vai-te Satanás! porque não compreendes as coisas de Deus,

mas só as dos homens».

Jesus é duríssimo para com Pedro e diz-lhe: ”Vai-te Satanás!”, que são as mesmas palavras que Jesus dirigiu ao Demónio quando este o foi tentar no deserto.

E, isto é dito, pouco depois de o ter elogiado pela resposta certíssima que tinha dado sobre quem Ele era.

Habitualmente as pessoas consideram que a atitude mais grave de Pedro foi ter negado três vezes que era discípulo de Jesus, quando este estava a ser condenado à morte por crucifixão.

Mas nessa ocasião, quando Jesus ia com a cruz às costas, dirigiu simplesmente um olhar cheio de misericórdia para Pedro, sem lhe dizer uma só palavra. E esse olhar foi compreendido por Pedro que foi chorar, profundamente arrependido.

Mas com atitude, Pedro, com toda a amizade queria afastar Jesus do caminho que o levaria à condenação, à tortura e à morte por crucifixão, onde está a gravidade a ponto de Jesus lhe ter gritado: ”Vai-te  Satanás!”

Pedro era o apóstolo em quem Jesus tinha maior confiança e a quem tinha dado a maior responsabilidade. Era precisamente Pedro que, com a melhor das intenções, O estava a procurar convencer que utilizasse os seus poderes de Messias, para destruir os planos dos que O queriam condenar à morte.

Pedro, o homem de confiança de Jesus, estava a tentá-lO, para o afastar da Vontade de Deus.

Esta conversa é uma das mais importantes dos Evangelhos.

E porquê?

Porque desde o tempo de Jesus até aos nossos dias, caímos na mesma atitude de Pedro: ficamos muito satisfeitos por darmos respostas certas sobre a nossa fé de cristãos, mas falta-nos conhecer bem como é que Jesus viveu para fazer avançar a aventura a que chamou o “Reinado de Deus”.

O que se passou com Pedro demonstra que leva muito tempo a aderir à partilha das prioridades de Jesus.

Jesus perguntou aos seus discípulos quem eles pensavam que Ele era.

Pedro respondeu muito bem: "És o Messias".

Mas o que é que essas palavras significavam para ele?

Pela atitude que Pedro teve, depois de ter recebido o ensinamento de Jesus sobre o que lhe iria acontecer, constatamos que ele pensava num Messias poderoso que devia usar o Seu poder, destruindo as forças do Mal.

Não tinha ainda compreendido que Jesus era um Messias cuja força passava pela sua fraqueza.

O Deus que descobrimos, graças a Jesus, não esmaga o Mal, mas em Jesus, seu Filho e seu Enviado, transforma o Mal em Bem.

Jesus não escapou à cruz, mas revelou a incapacidade de o Mal ter a última palavra, para vencer com a Vida e com o Amor.

E hoje?

A questão que Jesus colocou aos discípulos continua a ser decisiva para nós.

Como vamos responder à pergunta direta que Jesus nos faz:

“E para ti, quem é que Eu sou?”

O que é que esperamos de Jesus nas nossas interações com Deus e de Deus connosco?

Sabendo que Jesus é um Libertador que não evitou o sofrimento, mas que o transformou, será que ainda estamos dispostos a continuar a ser seus discípulos e a segui-Lo na confiança e no modo de viver que foi o d’Ele?

 

frei Eugénio, op (12.09.2021)


2024-09-07

Diálogo com o Evangelho

Diálogo com o Evangelho do XXIII Domingo do Tempo Comum, 8 de setembro, por Frei Eugénio Boléo, no programa de rádio da RCF "Construir sur la roche". Pode ouvir aqui. (gravado em setembro de 2021)

 

 

EVANGELHO (Mc. 7, 31-37)

Naquele tempo, Jesus deixou de novo a região de Tiro e, passando por Sidónia, veio para o mar da Galileia, atravessando o território da Decápole.
Trouxeram-Lhe então um surdo que mal podia falar e suplicaram-Lhe que impusesse as mãos sobre ele.
Jesus, levando-o a sós para longe da multidão, meteu-lhe os dedos nos ouvidos
e com saliva tocou-lhe a língua.
Depois, erguendo os olhos ao Céu, suspirou e disse-lhe:
«Effathá», que quer dizer «Abre-te».
Imediatamente se abriram os ouvidos do homem, soltou-se-lhe a prisão da língua
e começou a falar corretamente.
Jesus recomendou que não contassem nada a ninguém.
Mas, quanto mais lho recomendava, tanto mais intensamente eles o apregoavam.
Cheios de assombro, diziam: «Tudo o que faz é admirável: faz que os surdos oiçam e que os mudos falem».

DIÁLOGO

O Evangelho de hoje fala-nos de outro milagre de Jesus. Podemos imaginar como se passou.
Vemos Jesus a fazer uma sucessão de gestos simbólicos.
Marcos diz-nos que Jesus levou o surdo para o lado, a sós para longe da multidão.
A palavra utilizada para "o levar de lado (apo-lambano) é geralmente traduzida como "receber" em vez de "levar". Ficamos assim com a impressão que Jesus ao afastar-se com o homem, estava a recebê-lo na sua companhia privada, para um encontro mais pessoal, que não podia acontecer no meio de uma multidão.
Jesus realizou então a cura, colocando os seus dedos nos ouvidos do homem e pondo a sua própria saliva na sua língua.
Esses gestos de cura eram típicos do meio cultural de Jesus.
No entanto, a vontade de tocar uma pessoa doente era um sinal de solidariedade e o partilhar a sua própria saliva com o homem, era um gesto de intimidade especial.
Depois de fazer estes gestos, Jesus assumiu uma atitude de oração, de relação com Deus Pai, “Ergueu os olhos ao Céu” e “suspirou”, que no original significa rezar a pedir com muita intensidade. São Paulo (Rom 8, 26) diz que é o modo de fazer do Espírito Santo “que intercede por nós com suspiros sem palavras” .
Então Jesus com a intensidade dum forte suspiro, diz “Effatha!”, uma palavra em aramaico, a língua que Jesus falava, que se traduz "Abre-te".
Imediatamente o surdo-mudo se abriu à comunicação, ouvindo e falando.
Jesus não diz aos ouvidos "Abram-se" e à boca "Abre-te". É ao deficiente que diz "Abre-te".
É como se Jesus lhe tivesse dito: "Ouve, mas não basta ouvires palavras, também tens de ouvir, com o coração». E completasse: “Fala, mas não basta dizeres palavras, é preciso que também comuniques”.
O evangelista Marcos tem o cuidado de nos dizer que o falar do homem só se tornou compreensível depois de os seus ouvidos terem sido abertos.
Tanto a nível natural como a nível espiritual, a audição deve preceder a fala.
Até a sabedoria popular diz que Deus nos deu dois ouvidos e uma boca para escutarmos duas vezes mais do que falamos.
Jesus ensina-nos aqui que o importante nas relações humanas é haver encontro de pessoas.
Jesus quer que o nosso coração e toda a nossa pessoa escutem as palavras que Ele nos dirige.
As suas palavras são-nos dirigidas pessoalmente na intimidade dos nossos corações, como o fez com o surdo-mudo.
Jesus vem para curar e salvar a pessoa inteira, para dar sentido às nossas vidas, sejam quais forem os acontecimentos que as vão marcando.
Que a palavra que Jesus disse com toda a sua energia “Effatha”, possa continuar a ser ouvida no nosso íntimo, enchendo-nos de confiança que o Amor de Deus pode realizar milagres inimagináveis, para bem de toda a humanidade, através de cada um de nós.

     frei Eugénio, op (2021.09.09)