Mt. 11,2-11.
Ora João, que estava no cárcere, tendo ouvido falar das obras de Cristo, enviou-lhe os seus discípulos com esta pergunta:
«És Tu aquele que há-de vir, ou devemos esperar outro?»
Jesus respondeu-lhes:
«Ide contar a João o que vedes e ouvis:
Os cegos vêem e os coxos andam,
os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem,
os mortos ressuscitam e a Boa-Nova é anunciada aos pobres.
E bem aventurado aquele que não encontra em mim ocasião de escândalo.»
Depois de eles terem partido, Jesus começou a falar às multidões a respeito de João:
«Que fostes ver ao deserto? Uma cana agitada pelo vento? Então que fostes ver? Um homem vestido de roupas luxuosas? Mas aqueles que usam roupas luxuosas encontram-se nos palácios dos reis. Que fostes, então, ver? Um profeta? Sim, Eu vo-lo digo, e mais que um profeta. É aquele de quem está escrito: Eis que envio o meu mensageiro diante de ti, para te preparar o caminho. Em verdade vos digo: Entre os nascidos de mulher, não apareceu ninguém maior do que João Baptista; e, no entanto, o mais pequeno no Reino do Céu é maior do que ele.
2007.12.16
ResponderEliminarLITURGIA PAGÃ
Pagão provém do latim pagus = marco de terreno, aldeia,
por oposição à cultura citadina. O radical indo-europeu pak (donde pau) designa a união, estabilidade e a força próprias de Pacto e Paz.
Página também deriva do mesmo étimo, significando originalmente
campo lavrado em esquadria respeitando um marco («pau») bem fixo,
ao que se assemelha uma folha de papel escrita.
Liturgia deriva do grego laos (povo, leigo) e ergon (trabalho),
donde «serviço público».
Liturgia pagã é o esforço de trabalhar com Deus
com a liberdade, consciência e humildade de ser «pagão».
3º domingo do Advento (ano A)
1ª leitura: Livro de Isaías, 35, 1-10
2ª leitura: Carta de S. Tiago, 5, 7-10
Evangelho: S. Mateus, 11, 2-11
Investir no deserto
«Terras áridas», como diz Isaías, nada propícias ao florescimento da vida. A lembrar a maioria das igrejas católicas: atraem os curiosos, como turistas no Sahara ou, quando muito são refúgio de ocasião para quem precisa de se encontrar com Deus, longe do palco habitual da nossa vida – vida cada vez mais frenética, ruidosa e feroz como as lutas dos machos pela supremacia e pelo direito de possuir a fêmea mais dotada.
Para uns, o deserto é sobretudo sentido como ausência de vida à nossa volta; para outros, o deserto é o efeito do vento ruinoso das suas próprias palavras estéreis, deprimentes como essa paisagem, mas que serve à perfeição para gritarem e se ouvirem a si próprios.
Apetece desejar que ao menos os templos sejam cada vez mais desertos: não encontraríamos lá exemplos tristes da maneira de unir o humano ao divino, e, no total «segredo com Deus», viveríamos a razão profunda que nos levou até ao ermo.
Porque o deserto também enche o nosso imaginário da força misteriosa que parece vir de todos os lados e tanto nos pode trazer pavores como a beleza da solidão que robustece. «Deserto», aliás, etimologicamente, significa «fora da série» (ao contrário de «dissertar»), desligado, livre, adquirindo cedo o sentido de abandono e solidão. Por isso, para quem tiver coragem de exercitar a sua liberdade, o deserto está sempre ao nosso dispor, afinal dentro de nós.
«Que fostes ver ao deserto?», perguntou Jesus aos discípulos de João Baptista. E eles poderiam ter respondido: fomos ver as terras áridas cobrirem-se de flores e exultarem com brados de alegria; fomos ver o descampado a cobrir-se de vida, onde os surdos entendem a voz do vento e os mudos proclamam as novas maravilhas de que os cegos já podem ser testemunhas; fomos ver, ouvir e sentir um profeta extraordinário que dizia de si nada valer, porque apenas é pregoeiro da chegada eminente da Vida que vence a desolação.
Só que João julgava que essa Vida apareceria como num trono glorioso de reis e como justiceira de toda a humanidade. «Serás mesmo tu, Aquele que há-de vir?»
Nem S. João Baptista, na intimidade com Deus no deserto, podia ver claramente a estranha novidade. Tão estranha, que o próprio Jesus, com as limitações próprias da nossa espécie humana, só lentamente, ao longo da sua vida, foi interiorizando essa mesma missão divina, modificando o próprio discurso e maneira de agir.
Talvez radique neste passo a esquisita afirmação de que «o menor no reino dos Céus é maior do que João Baptista»: só depois de Jesus, é que podemos compreender o novo estilo da relação de Deus connosco, sem a imponência algo aterradora das antigas manifestações divinas. Doravante, a nossa relação com Deus situa-se noutro nível, de que João foi o grande «mensageiro que prepara o caminho». A ressurreição de Jesus mostrou que toda a humanidade leva em si a semente que lhe permite «ressurgir», e toda a natureza está sequiosa pelo final feliz do plano de Deus para toda a Criação.
Com a vinda de Jesus, descobriu-se o sentido profundo do maravilhoso poema de Isaías – o profeta que mais expressivamente apresenta a dor e a alegria, a luta e a paz da terra inteira.
Jesus, porém, advertiu: «bem-aventurado aquele que não encontrar em mim motivo de escândalo». Jesus é sinal de contradição (Mateus, 10, 34), porque nos provoca, exigindo uma escolha corajosamente “transparente” (como “certos alguns” passam o tempo a exigir – mas a esses sugere Jesus (Mateus,7,3) que limpem a sujidade dos próprios olhos, antes de atacarem o argueiro nos olhos do vizinho).
Não podemos chamar bem ao que é mal, nem vice-versa. Não podemos cruzar os braços quando a ajuda está ao nosso alcance. Mas como seres eminentemente sociais, é nosso dever saber discutir os diversos pontos de vista e avaliar o fruto das árvores. Será que, quando lutamos, esquecemos a diferença específica da humanidade que é a capacidade racional? (Note-se que lutar não é «para matar»! O radical indo-europeu «leug» (flectir) aponta claramente para a actividade ginástica).
Com a vinda de Jesus, consolida-se a esperança da «eterna felicidade» (Isaías). Se não fosse eterna, que adiantava a esta vida? O próprio Nietzsche comentou que a alegria exige eternidade.
Mas precisamos de tanta «paciência»! Que o diga S. Tiago (2ª leitura). Paciência que é firmeza durante a adversidade, tempo do amor que ama sem olhar ao tempo; a paciência simples de quem sabe que «atrás de tempo, tempo vem»; a paciência dos amigos da Sabedoria, que espera, perdoa, mas vai sempre corrigindo, sem se destruir com a indignação, interessada mais em alimentar a erva boa do que em destruir sem jeito a erva má.
Não se chama Deus a Ele próprio, o «Deus da paciência»? Namorou o seu povo durante quarenta anos no deserto... Quando amamos apaixonadamente, tudo o mais é deserto. Mas quando a paixão se transforma em amor mais rico, todo o deserto se enche de Vida e de verdadeiros profetas – estrelas que brilham sem nos cegarem com o venenoso «pó de estrelas».
Afinal, o deserto tem muito para dizer. Que vamos investir no deserto?
MANUEL ALTE DA VEIGA.
m.alteveiga@netcabo.pt