Vale a pena ler este texto lúcido de Teresa Toldy sobre as recentes alterações efectuadas pela Congregação da Doutrina da Fé em matéria de delitos graves e que equipara (ou não totalmente) a ordenação de mulheres e a pedofilia (o que no mínimo revela grave insensibilidade em relação a ambos os temas).
Aqui fica o texto que nos chegou por mão amiga:
«A Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé emitiu um documento com “Normas substantivas” para julgar “delitos contra a fé, assim comodelitos graves cometidos contra a moral e na celebração dos sacramentos” (Parag. 1).
Entre estes delitos graves encontram-se os de“tentativa de ordenação de uma mulher” (Artº 5) e aqueles quesão “cometidos contra o sexto mandamento do decálogo, cometidos por umclérigo com um menor de dezoito anos” (Artº 6).
O documento é extenso, incluindo outros delitos, sobretudo relacionados com os sacramentos, bem como pormenores relativamente à instrução dos processos que exigiriam uma análise detalhada por parte de um canonista. Limitar-me-ei a comentar alguns aspectos dos dois artigos referidos: o 5º e o 6º.
Quanto ao artigo 6º, note-se que o documento refere actos cometidos contra o sexto mandamento, que manda “guardar castidade nosactos e nas palavras”. Significa isto que os actos de abuso de menoressão aqui referidos eufemísticamente como “atentados contra a castidade”.
Atente-se na linguagem “sacra” e mistificadora utilizada paradescrever os crimes em causa. Não é utilizado o termo “pedofilia”, nem é referido que a instrução de um processo dentro da Igreja não dispensa a instrução de um processo criminal, nos tribunais própriosdos Estados de direito.
Pergunto-me como se sentirão as vítimas, pois nem me atrevo a daropinião sobre isso, por respeito pelo seu sofrimento.
Poder-se-á perguntar também, quando o acto em causa é designado comosendo atentatório ao 6º mandamento, à castidade de quem se refere? À do clérigo ou à da vítima?
Quanto à punição prevista: diz o parágrafo 2º do mesmo documento que “um clérigo que cometa os delitos mencionados” será “punido de acordo com a gravidade do seu crime, não estando excluídas a demissão ou adeposição”. Portanto, depreende-se que há graus de gravidade nos actosde pedofilia, melhor, de atentado à castidade. Quais serão esses graus?
Quanto ao artigo 5º., diz-se que o clérigo que tente ordenar uma mulher “pode ser castigado com a demissão ou a deposição”. Por seu lado, a mulher que tente receber a ordem sagrada, “incorre emexcomunhão latae sententiae reservada à Sé Apostólica” (artº 5, 1º).
A associação da ordenação de mulheres a uma lista de erros graves que inclui a pedofilia é, no mínimo, insultuosa. Tanto mais insultuosa quanto relevadora, explicitamente, de que a Igreja Católica, na sua hierarquia, é provavelmente a única instituição à escala global que continua a discriminar as mulheres com base na sua própria identidade, associando-se, assim, a lógicas de pensamento xenófobas e racistas, deacordo com as quais pessoas com determinadas características físicas, constitutivas da sua identidade profunda, estão impedidas de acesso a determinados cargos por causa de possuírem essas mesmas características.
Esta associação é tanto mais grave quanto a pena para um padre ou bispo que tente ordenar uma mulher é enunciada com menos rodeios do que a pena para um clérigo que cometa abuso de menores: no caso deste último, não está excluída a demissão, mas, de acordo com a gravidadedo seu crime…
Chegados a este ponto, no início do século XXI, para que possa continuar a ser legítimo afirmar que nem toda a gente na Igreja pensa assim, que nem todos os clérigos pensam assim, que não se pode tomar a hierarquia pelo todo, será necessário que a hierarquia prove isto mesmo e que se levantem aqueles, no seu seio, que, por amor à Igreja, estejam convencidos da necessidade de não continuar a ferir o Povo de Deus.»
TERESA TOLDY