Deus ficou calado em Auschwitz, sim. Como continua, hoje, calado no Darfur, ou o esteve no Ruanda, na Bósnia, nas crianças que morrem diariamente de fome ou nas pessoas que, também todos os dias, são mortas por armas ligeiras e guerras pesadas.
Vai, no entanto, por aí alguma confusão em alguns espíritos, quando se confunde o silêncio de Deus com o silêncio das pessoas ou das instituições. O tema do silêncio de Deus tem sido debatido culturalmente (incluindo israelitas como Elie Wiesel). Há quem fale mesmo da impossibilidade da poesia depois do Holocausto. Mas o "silêncio de Deus" é uma expressão para designar um dos mais profundos mistérios da existência humana: porquê o mal? Como foi possível chegar à barbárie, quando já estamos na civilização? Que insondável desígnio é esse que nos leva a aniquilar o outro, quando podemos ser fraternos com ele?
Sim, em Auschwitz, todos fomos verdugos e todos fomos vítimas. Porque o mal coabita com o melhor de nós mesmos. E o que separa a capacidade de fazer o bem e o mal é, por vezes, um limiar quase imperceptível. Nos nossos quotidianos, há formas de aniquilamento do outro que só não atingem a perversidade de Auschwitz porque não temos câmaras de gás ao dispor de cada um. De resto, estão lá o desejo de domínio, de humilhação, a indignidade a que remetemos o outro. Seja em tantos ambientes familiares ou nas escolas, nas empresas e lugares de trabalho, na política, na economia e na vida social. O tema do silêncio de Deus é, assim, o tema do que cada pessoa faz com a sua liberdade. E não uma qualquer pergunta sobre a momentânea ausência de um ser todo-poderoso que interfere e, ex machina, dá ordens às suas criaturas, quais marionetas, para fazer o bem. É verdade que, muitas vezes, as estruturas religiosas passam a ideia de um deus poderoso que tudo regularia. Pessoalmente, o Deus em que acredito é aquele que me dá a escolher, entre o bem e o mal, na minha consciência e na mais plena liberdade. A afirmação de um Deus todo-poderoso não leva à certeza absoluta sobre tudo: "A atitude contrária à fé não é a hesitação nem a dúvida, é a certeza de que já tenho resposta para tudo (...) tornando-me impermeável à assombrosa novidade de Deus", escreve o irmão John, de Taizé (À Beira da Fonte, ed. AO).
Há poucos dias, ouvi-o dizer melhor a Emma Ocaña, teóloga e psicoterapeuta espanhola: "Deus não é um protector que evita que o mal nos aconteça na vida. Deus é uma presença, que sabemos estar connosco quando a vida nos corre bem ou quando a vida nos corre mal."Etty Hillesum, uma judia que morreu em Auschwitz e que deixou um diário onde também dialoga com o cristianismo ou com autores como Rilke e Dostoievski, escrevia, em Junho de 1942, poucos meses antes de morrer: "Não é Deus, mas nós, quem tem de dar conta dos absurdos que nos são imputáveis. Eu já sofri mil mortes em mil campos de concentração. Tudo me é familiar. Já não há nenhuma nova informação que me angustie. De um modo ou de outro, já sei tudo. E, no entanto, vejo esta vida formosa e cheia de sentido. Em cada instante."
António Marujo, Público, 11.06.2006 (sem link)