2024-10-06

Diálogo com o Evangelho

Diálogo com o Evangelho do XXVII Domingo do Tempo Comum, 6 de outubro, por Frei Eugénio Boléo, no programa de rádio da RCF "Construir sur la roche". Pode ouvir aqui. (gravado em Outubro de 2021)

 

 

EVANGELHO   (Mc 10, 2-16)

Naquele tempo, aproximaram-se de Jesus uns fariseus, que, para O porem à prova, perguntaram-Lhe: «Pode um homem repudiar a sua mulher?».
Jesus disse-lhes: «Que vos ordenou Moisés?».
Eles responderam: «Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio para se repudiar a mulher».
Jesus disse-lhes: «Foi por causa da dureza do vosso coração que ele vos deixou essa lei.
Mas, no princípio da criação, "Deus fê-los homem e mulher.
Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa,
e os dois serão uma só carne". Deste modo, já não são dois, mas uma só carne.
Portanto, não separe o homem o que Deus uniu».
Em casa, os discípulos interrogaram-no de novo sobre este assunto.
Jesus disse-lhes então: «Quem repudiar a sua mulher e casar com outra, comete adultério contra a primeira.
E se a mulher repudiar o seu marido e casar com outro, comete adultério».
Apresentaram a Jesus umas crianças para que Ele lhes tocasse, mas os discípulos afastavam-nas.
Jesus, ao ver isto, indignou-Se e disse-lhes: «Deixai vir a Mim as criancinhas, não as estorveis: dos que são como elas é o reino de Deus.
Em verdade vos digo: Quem não acolher o reino de Deus como uma criança não entrará nele».
E, abraçando-as, começou a abençoá-las, impondo as mãos sobre elas.
 
DIÁLOGO

Acontece por vezes que uma catequista, quando tem de preparar uma celebração ou uma catequese sobre uma passagem do Evangelho, faz a observação: "Que Evangelho difícil!"

Também me acontece que na preparação de uma homilia dominical, eu diga: "Que Evangelho tão difícil de pregar!"

Um dia, quando pedi ajuda para preparar a homilia, fui dizendo que o Evangelho era muito difícil. Como resposta recebi uma interpelação: "Achas que há Evangelhos fáceis?"

Nunca mais esqueci essa observação tão pertinente.

Se o Evangelho é uma boa notícia sobre o modo de vida de Jesus, na construção do Reino de Deus no tempo presente, é um desafio tão grande, que exige decisões que nunca são fáceis.

Podemos também fazer a mesma pergunta sobre o amor.

"Haverá um amor fácil?”

Viver o amor é um caminho tão cheio de desafios, que nunca é fácil.

Já lá vão cinco anos, quando o Papa Francisco escreveu uma Exortação Apostólica datada de 19 de Março de 2016, a que chamou "A Alegria do Amor” e cujo subtítulo era "O Amor na Família".

Em várias passagens, o Papa chama a atenção para  três pontos sobre o amor, que nos podem ajudar a vê-lo de uma forma muito mais profunda.

1-Cada história de amor é única.

Não existe uma linha de produção para o amor.

É um artesanato que demora a ser feito, que requer um saber-fazer e precisa de ser tratado com cuidado, porque é frágil.

2-Alegrar-mo-nos com as histórias de amor vividas por outros e partilhar com eles a nossa alegria, encorajando-os a continuar.

Não sermos juízes das experiências menos felizes vividas por outros.

3-Reconhecer ao longo da vida que o amor, em todas as suas facetas, é um dom de Deus.

Reconhecer que as pessoas que nos amam e as que nós amamos são também um  dom de Deus.

Mas no Evangelho que acabamos de ler, Jesus não foi questionado sobre o amor na família, mas foi confrontado com a legalidade  dos  maridos poderem repudiar as suas esposas, dando-lhe um certificado de divórcio.

Na Lei de Moisés, as esposas eram consideradas propriedade dos seus maridos e podiam ser enviadas embora, tal como se faz com uma peça de mobiliário doméstico, da qual o marido se quer ver livre.

Havia debates muito acesos entre as escolas de doutores da Lei sobre as condições legais para o repúdio de uma esposa.

Jesus quis basear a sua resposta, não na lei de Moisés, mas no Livro dos Génesis.

Estava, assim, a levar quem o estava a ouvir, a considerar não só a Lei do  povo de Israel, mas o propósito de Deus na criação da mulher e do homem.

Segundo este primeiro livro da Bíblia, Deus Criador fez do homem e da mulher participantes na obra da sua criação e, ao mesmo tempo, fez deles instrumentos do seu amor, confiando-lhes a responsabilidade pelo futuro da humanidade através da transmissão da vida humana.

Segundo a ordem da criação, o amor conjugal entre um homem e uma mulher e a transmissão da vida estão ordenados um ao outro (ver Gen. 1,27-28).

Jesus chamou a atenção para as palavras do Génesis: “não separe o homem o que Deus uniu". Isto é o que tem sido chamado, com um termo jurídico, a indissolubilidade do casamento, que os primeiros cristãos adotaram desde o início.

Esta herança, baseia-se numa visão do ser humano como ser sexuado, mulher e homem, na complementaridade entre eles para se completarem e com igual dignidade.

A Igreja nos finais do século XX, através de numerosos apelos que os bispos de todo o mundo iam fazendo, a partir do que a base dos fiéis  lhes ia manifestando, compreendeu que não podia contentar-se em repetir apenas a proibição do divórcio.

O trabalho foi longo: dois anos de investigações e de discussões em todos os países, 2 Sínodos em Roma e finalmente em 2016, a publicação pelo Papa Francisco da  Exortação Apostólica “A alegria do Amor”, também conhecida pelo nome “Amoris laetitia”, do original latino.

A Exortação, que vale muito a pena ser lida, aborda muitos aspetos: as características do amor do casal e da família na vida quotidiana, a transmissão da vida e a educação dos filhos, a educação sexual nas etapas do crescimento, o papel dos avós, o desafio das crises, etc.

Mas o capítulo da Exortação que imediatamente recebeu mais comentários e suscitou maiores debates foi o 8º: "Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade".

Três verbos que indicam as três  atitudes essenciais que a Igreja  deve ter para com as pessoas em situações de fragilidade ou de imperfeição, marcadas por um amor ferido e mal guiado, restabelecendo nelas a confiança e a esperança. (ver § 291)

A Igreja deve ter bem presente que se as ruturas da união matrimonial vão contra a Vontade de Deus, mas elas são a consequência das fragilidades dos seus filhos, perante a dificuldade de viverem o amor em casal e em família.

As pessoas divorciadas e casadas de novo, num casamento civil, ou que simplesmente vivem juntas, continuam  a ser membros da Igreja que lhes deve manifestar a pedagogia da misericórdia de Deus nas suas vidas  e ajudá-las a aproximarem-se do projeto de Deus para elas. (ver §297)

Duas lógicas percorrem  toda a história da Igreja: marginalizar e reintegrar.

Mas o caminho da Igreja deve ser sempre  o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração.

Esta é a lógica do Evangelho, que Jesus viveu e anunciou.

frei Eugénio, op
(03.10.2021)


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