2024-10-13

Diálogo com o Evangelho

Diálogo com o Evangelho do XXVIII Domingo do Tempo Comum, 13 de outubro, por Frei Eugénio Boléo, no programa de rádio da RCF "Construir sur la roche". Pode ouvir aqui. (gravado em Outubro de 2021)

 

 

EVANGELHO   (Mc 10, 17-27)

Naquele tempo, Jesus pôr-Se a caminho,
quando um homem se aproximou correndo,
ajoelhou diante d’Ele e Lhe perguntou:
«Bom Mestre, que hei-de fazer para alcançar a vida eterna?»
Jesus respondeu:
«Porque Me chamas bom? Ninguém é bom senão Deus.
Tu sabes os mandamentos:
‘Não mates; não cometas adultério;
não roubes; não levantes falso testemunho;
não cometas fraudes; honra pai e mãe’».
O homem disse a Jesus:
«Mestre, tudo isso tenho eu cumprido desde a juventude».
Jesus olhou para ele, amou-o e disse:
«Falta-te uma coisa: vai vender o que tens,
dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu.
Depois, vem e segue-Me».
Ele, porém, contristado com essas palavras, foi-se embora  entristecido. Pois ele tinha muitos bens.
Então Jesus, olhando à sua volta, disse aos discípulos:
«Como será difícil para os que têm riquezas entrar no reino de Deus!»
Os discípulos ficaram admirados com estas palavras.
Mas Jesus afirmou-lhes de novo:
«Meus filhos, como é difícil entrar no reino de Deus!
É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha
do que um rico entrar no reino de Deus».
Eles admiraram-se ainda mais e diziam uns aos outros:
«Quem pode então salvar-se?»
Fitando neles os olhos, Jesus respondeu:
«Aos homens é impossível, mas não a Deus, porque a Deus tudo é possível».
 

DIÁLOGO

Para apreciarmos bem esta passagem tão conhecida do Evangelho de Marcos é preciso ter em atenção a atitude de Jesus: «Jesus olhou para ele, amou-o».

O evangelista Marcos é o único a referir-se ao olhar de Jesus, utilizando um verbo que salienta bem a qualidade desse olhar: «olhar dentro dele». É o modo de olhar que é próprio de Deus. Deus só tem esse olhar, que vê sempre o coração de cada um e Ele próprio vê com o Seu Coração.
 
Também só Marcos salienta o amor de Jesus por este homem de boa vontade, muito provavelmente por ele ter manifestado o desejo de ir mais além do que o cumprimento dos mandamentos da Lei.
 
Jesus propõe-lhe cinco atitudes: vai, vende, dá, vem e segue-me!
Essas atitudes que Jesus lhe propõe tocaram o coração do homem rico e também podem penetrar em nós.
Se ouvimos o apelo de Jesus para o seguirmos, temos de aceitar as responsabilidades e as opções que esse caminhar nos exige.
 
O mais importante que Jesus lhe propõe é «vem» e «segue-me». É este chamamento que motiva o desprendimento do «vai, vende e dá».
Para seguir o caminho com Jesus é necessário afastar os obstáculos que dificultam ou impedem vivermos uma proximidade pessoal com Jesus e com o seu modo de viver.
 
O Evangelho de Marcos não diz que o homem rico se afastou de Deus, mas quer mostrar-nos que este homem educado e de boa prática religiosa, perdeu uma oportunidade que lhe foi apresentada por Jesus, para se tornar um crente comprometido com a Boa Nova que Jesus trazia.
Tendo ficado preso aos seus bens, ficou entristecido, afastou-se sem horizontes, sem caminho.

Nas nossas vidas, há muitas situações em que, tal como o homem rico, o Senhor nos chama.
Pode ser num momento de separação, declínio físico, de problemas de saúde, ou pelo contrário tendo amizades e alegrias partilhadas ou uma fase da vida como a saída dos filhos de casa ou a transição para a reforma e muitas outras. Estas situações levantam-nos questões sobre o modo como Deus, através delas, nos está a chamar.

Estas situações levam-nos a nos interrogarmos: "O que é que eu devo fazer? », « Que queres que eu faça, Senhor?»
Os apelos de Deus são graças que nos são dadas, pois manifestam a confiança que Deus põe em nós para colaborarmos com Ele.
« Jesus olhou para ele e amou-o.»
O homem rico representa todos e cada um de nós, que desejamos sinceramente seguir o caminho de Jesus.
Jesus olha-nos no coração e o Seu olhar está a chamar-nos: «Vem e segue-me » nas circunstâncias e com os bens que temos.
Recebemos o Seu amor confiante e aceitando seguir caminho com Ele, aprendemos a ir gerindo, com os critérios de Jesus, todos os diferentes bens que possuímos.
 
Para seguirmos Jesus, com empenho e liberdade, devemos fazer uma avaliação do que possuímos, desde os nossos bens materiais até à nossa liberdade e independência pessoais.
Será que o que possuímos nos traz liberdade para viver e dar, ou nos amarra e nos faz andar com medo de perder o que temos ?
 
O homem que foi chamado, não satisfez o seu desejo, que o tinha levado a dirigir-se com entusiasmo a Jesus. O apego aos seus bens pode alterar a verdade do homem apoderando-se do seu coração.
Esta passagem  do Evangelho relaciona « tristeza » com « riqueza ». Se a miséria e a pobreza extremas nos entristecem, também os bens nos podem trazer tristeza. Se nos deixamos vencer pelo medo que nos pode levar a preferir a segurança dos bens à incerteza da relação com Jesus e com o seu modo de viver.
Jesus ensina claramente que as tentações, sobretudo as das seguranças e do êxito, fazem parte integrante do caminhar com Ele, que também foi tentado até aos últimos momentos da sua vida, já pregado na cruz.
 
Por isso o nosso seguimento de Jesus deve ser renovado e escolhido de novo em cada dia.
 
  frei Eugénio, op
(10.10.2021)
 

2024-10-06

Diálogo com o Evangelho

Diálogo com o Evangelho do XXVII Domingo do Tempo Comum, 6 de outubro, por Frei Eugénio Boléo, no programa de rádio da RCF "Construir sur la roche". Pode ouvir aqui. (gravado em Outubro de 2021)

 

 

EVANGELHO   (Mc 10, 2-16)

Naquele tempo, aproximaram-se de Jesus uns fariseus, que, para O porem à prova, perguntaram-Lhe: «Pode um homem repudiar a sua mulher?».
Jesus disse-lhes: «Que vos ordenou Moisés?».
Eles responderam: «Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio para se repudiar a mulher».
Jesus disse-lhes: «Foi por causa da dureza do vosso coração que ele vos deixou essa lei.
Mas, no princípio da criação, "Deus fê-los homem e mulher.
Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa,
e os dois serão uma só carne". Deste modo, já não são dois, mas uma só carne.
Portanto, não separe o homem o que Deus uniu».
Em casa, os discípulos interrogaram-no de novo sobre este assunto.
Jesus disse-lhes então: «Quem repudiar a sua mulher e casar com outra, comete adultério contra a primeira.
E se a mulher repudiar o seu marido e casar com outro, comete adultério».
Apresentaram a Jesus umas crianças para que Ele lhes tocasse, mas os discípulos afastavam-nas.
Jesus, ao ver isto, indignou-Se e disse-lhes: «Deixai vir a Mim as criancinhas, não as estorveis: dos que são como elas é o reino de Deus.
Em verdade vos digo: Quem não acolher o reino de Deus como uma criança não entrará nele».
E, abraçando-as, começou a abençoá-las, impondo as mãos sobre elas.
 
DIÁLOGO

Acontece por vezes que uma catequista, quando tem de preparar uma celebração ou uma catequese sobre uma passagem do Evangelho, faz a observação: "Que Evangelho difícil!"

Também me acontece que na preparação de uma homilia dominical, eu diga: "Que Evangelho tão difícil de pregar!"

Um dia, quando pedi ajuda para preparar a homilia, fui dizendo que o Evangelho era muito difícil. Como resposta recebi uma interpelação: "Achas que há Evangelhos fáceis?"

Nunca mais esqueci essa observação tão pertinente.

Se o Evangelho é uma boa notícia sobre o modo de vida de Jesus, na construção do Reino de Deus no tempo presente, é um desafio tão grande, que exige decisões que nunca são fáceis.

Podemos também fazer a mesma pergunta sobre o amor.

"Haverá um amor fácil?”

Viver o amor é um caminho tão cheio de desafios, que nunca é fácil.

Já lá vão cinco anos, quando o Papa Francisco escreveu uma Exortação Apostólica datada de 19 de Março de 2016, a que chamou "A Alegria do Amor” e cujo subtítulo era "O Amor na Família".

Em várias passagens, o Papa chama a atenção para  três pontos sobre o amor, que nos podem ajudar a vê-lo de uma forma muito mais profunda.

1-Cada história de amor é única.

Não existe uma linha de produção para o amor.

É um artesanato que demora a ser feito, que requer um saber-fazer e precisa de ser tratado com cuidado, porque é frágil.

2-Alegrar-mo-nos com as histórias de amor vividas por outros e partilhar com eles a nossa alegria, encorajando-os a continuar.

Não sermos juízes das experiências menos felizes vividas por outros.

3-Reconhecer ao longo da vida que o amor, em todas as suas facetas, é um dom de Deus.

Reconhecer que as pessoas que nos amam e as que nós amamos são também um  dom de Deus.

Mas no Evangelho que acabamos de ler, Jesus não foi questionado sobre o amor na família, mas foi confrontado com a legalidade  dos  maridos poderem repudiar as suas esposas, dando-lhe um certificado de divórcio.

Na Lei de Moisés, as esposas eram consideradas propriedade dos seus maridos e podiam ser enviadas embora, tal como se faz com uma peça de mobiliário doméstico, da qual o marido se quer ver livre.

Havia debates muito acesos entre as escolas de doutores da Lei sobre as condições legais para o repúdio de uma esposa.

Jesus quis basear a sua resposta, não na lei de Moisés, mas no Livro dos Génesis.

Estava, assim, a levar quem o estava a ouvir, a considerar não só a Lei do  povo de Israel, mas o propósito de Deus na criação da mulher e do homem.

Segundo este primeiro livro da Bíblia, Deus Criador fez do homem e da mulher participantes na obra da sua criação e, ao mesmo tempo, fez deles instrumentos do seu amor, confiando-lhes a responsabilidade pelo futuro da humanidade através da transmissão da vida humana.

Segundo a ordem da criação, o amor conjugal entre um homem e uma mulher e a transmissão da vida estão ordenados um ao outro (ver Gen. 1,27-28).

Jesus chamou a atenção para as palavras do Génesis: “não separe o homem o que Deus uniu". Isto é o que tem sido chamado, com um termo jurídico, a indissolubilidade do casamento, que os primeiros cristãos adotaram desde o início.

Esta herança, baseia-se numa visão do ser humano como ser sexuado, mulher e homem, na complementaridade entre eles para se completarem e com igual dignidade.

A Igreja nos finais do século XX, através de numerosos apelos que os bispos de todo o mundo iam fazendo, a partir do que a base dos fiéis  lhes ia manifestando, compreendeu que não podia contentar-se em repetir apenas a proibição do divórcio.

O trabalho foi longo: dois anos de investigações e de discussões em todos os países, 2 Sínodos em Roma e finalmente em 2016, a publicação pelo Papa Francisco da  Exortação Apostólica “A alegria do Amor”, também conhecida pelo nome “Amoris laetitia”, do original latino.

A Exortação, que vale muito a pena ser lida, aborda muitos aspetos: as características do amor do casal e da família na vida quotidiana, a transmissão da vida e a educação dos filhos, a educação sexual nas etapas do crescimento, o papel dos avós, o desafio das crises, etc.

Mas o capítulo da Exortação que imediatamente recebeu mais comentários e suscitou maiores debates foi o 8º: "Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade".

Três verbos que indicam as três  atitudes essenciais que a Igreja  deve ter para com as pessoas em situações de fragilidade ou de imperfeição, marcadas por um amor ferido e mal guiado, restabelecendo nelas a confiança e a esperança. (ver § 291)

A Igreja deve ter bem presente que se as ruturas da união matrimonial vão contra a Vontade de Deus, mas elas são a consequência das fragilidades dos seus filhos, perante a dificuldade de viverem o amor em casal e em família.

As pessoas divorciadas e casadas de novo, num casamento civil, ou que simplesmente vivem juntas, continuam  a ser membros da Igreja que lhes deve manifestar a pedagogia da misericórdia de Deus nas suas vidas  e ajudá-las a aproximarem-se do projeto de Deus para elas. (ver §297)

Duas lógicas percorrem  toda a história da Igreja: marginalizar e reintegrar.

Mas o caminho da Igreja deve ser sempre  o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração.

Esta é a lógica do Evangelho, que Jesus viveu e anunciou.

frei Eugénio, op
(03.10.2021)


2024-09-29

Diálogo com o Evangelho

Diálogo com o Evangelho do XXVI Domingo do Tempo Comum, 29 de setembro, por Frei Eugénio Boléo, no programa de rádio da RCF "Construir sur la roche". Pode ouvir aqui. (gravação não disponível)

 

 

EVANGELHO   (Mc 9, 38-48)

Naquele tempo, João disse a Jesus:
«Mestre, nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome
e procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco».
Jesus respondeu:
«Não o proibais; porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome
e depois dizer mal de Mim. Quem não é contra nós é por nós.
Quem vos der a beber um copo de água, por serdes de Cristo,
em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa.
Se alguém escandalizar algum destes pequeninos
que crêem em Mim, melhor seria para ele que lhe atassem ao pescoço
uma dessas mós movidas pró um jumento
e o lançassem ao mar.
Se a tua mão é para ti ocasião de escândalo, corta-a;
porque é melhor entrar mutilado na vida
do que ter as duas mãos e ir para a Geena,
para esse fogo que não se apaga.
E se o teu pé é para ti ocasião de escândalo, corta-o;
porque é melhor entrar coxo na vida
do que ter os dois pés e ser lançado na Geena.
E se um dos teus olhos é para ti ocasião de escândalo, deita-o fora;
porque é melhor entrar no reino de Deus só com um dos olhos
do que ter os dois olhos e ser lançado na Geena,
onde o verme não morre e o fogo não se apaga».

 

DIÁLOGO

O Evangelista Marcos continua a relatar-nos a etapa fundamental da vida de Jesus a caminho de Jerusalém, onde irá sofrer a Paixão e Crucifixão, às quais se seguirá a Ressurreição Pascal. Nesta etapa decisiva os discípulos continuam a manifestar uma grande incompreensão acerca das prioridades de Jesus na sua pregação.

No relato de hoje, o apóstolo João vai queixar-se a Jesus do sucesso de um homem que expulsava demónios em Seu nome, mas sem pertencer ao grupo. João fala em nome dos discípulos. Porque é que eles estão descontentes com o trabalho desse homem?

Esse homem estava a combater o mal, expulsando demónios, mas eles queriam impedi-lo.

Já no tempo de Moisés, Deus tinha partilhado o poder de profetizar de Moisés com 70 anciãos que se puseram a profetizar, mas isso não durou muito. Ora, dois homens que tinham ficado no acampamento, sem terem ido com os 70 anciãos também receberam o espírito e começaram a profetizar. Josué auxiliar de Moisés há muitos anos insiste em que ele os faça calar, o que Moisés recusa.

Também Jesus perante o apelo de João, diz aos discípulos: “Quem não é contra nós é por nós.” Se o homem tinha esse poder, é porque Deus lho tinha dado. Jesus quer que os seus discípulos tenham presente que o poder e a autoridade que tinham recebido vinha de Deus para fazerem a Sua Vontade.

Jesus deu-lhes poder para servirem o Reino de Deus. Não deviam desviar esse poder para os seus próprios interesses. A Igreja não é proprietária da força de salvação de Jesus. A Igreja deve estar atenta ao Espírito de Deus (Espírito Santo) que felizmente sopra onde quer, ultrapassando todas as fronteiras que lhe queiram impor.

O que é pedido aos discípulos é que reconheçam a obra de Deus, mesmo onde menos se espera. O Espírito que lhes é dado, inspira liberdade, imaginação e criatividade, que desconcerta e surpreende. Por isso, a graça de Deus não está confinada aos instrumentos que a Igreja utiliza, como os sacramentos, nem é monopólio daqueles nela têm funções hierárquicas.

Jesus diz a João e aos seus companheiros que aquele homem não deve ser impedido de expulsar demónios em Seu nome. Se esse homem pode expulsar o mal em Seu nome, é porque Deus lhe deu esse poder. Ou seja, Jesus quer que os discípulos compreendam que o Espírito não conhece fronteiras e não faz aceção de pessoas.

Jesus chama a atenção para a largueza do Reino de Deus, no qual todos podem participar na luta contra o mal e a exclusão.

Quem cria união e comunhão, sob todas as formas, está assim a colaborar com a construção do Reino.

Jesus quis que os seus discípulos formassem uma assembleia “católica”, que quer dizer, universal, onde cada um pode ter um lugar ativo.

Frei Eugénio, op (26.09.2021)


2024-09-15

Diálogo com o Evangelho

Diálogo com o Evangelho do XXIV Domingo do Tempo Comum, 15 de setembro, por Frei Eugénio Boléo, no programa de rádio da RCF "Construir sur la roche". Pode ouvir aqui. (gravado em setembro de 2021)

 

 

EVANGELHO   (Mc 8, 27-35)

Naquele tempo, Jesus partiu com os seus discípulos

para as povoações de Cesareia de Filipe.

No caminho, fez-lhes esta pergunta: «Quem dizem os homens que Eu sou?»

Eles responderam:

«Uns dizem João Baptista; outros, Elias; e outros, um dos profetas».

Jesus então perguntou-lhes: «E vós, quem dizeis que Eu sou?»

Pedro tomou a palavra e respondeu: «Tu és o Messias».

Ordenou-lhes então severamente que não falassem d’Ele a ninguém.

Depois, começou a ensinar-lhes

que o Filho do homem tinha de sofrer muito, de ser rejeitado pelos anciãos,

pelos sumos sacerdotes e pelos escribas;

de ser morto e ressuscitar três dias depois. E Jesus dizia-lhes claramente estas coisas.

Então, Pedro tomou-O à parte e começou a contestá-l’O.

Mas Jesus, voltando-Se e olhando para os discípulos, repreendeu Pedro, dizendo: «Vai-te, Satanás,

porque não compreendes as coisas de Deus, mas só as dos homens».

E, chamando a multidão com os seus discípulos, disse-lhes:

«Se alguém quiser seguir-Me, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me.

Na verdade, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á;

mas quem perder a vida, por causa de Mim e do Evangelho, salvá-la-á».

 

DIÁLOGO

Este diálogo de Jesus com os apóstolos é seguramente um dos mais importantes do NT. 

Passa-se numa ocasião decisiva da vida de Jesus, uns meses antes da sua morte.

Jesus perguntou primeiro aos seus discípulos:

“Qual é a opinião que as pessoas têm acerca de Mim?

Ao terem de responder sobre as várias opiniões populares,

os discípulos são levados por Jesus a refletir, eles também, sobre o que é que eles próprios pensam sobre quem é Jesus.

E a pergunta direta veio logo a seguir: “E para vocês, quem é que Eu sou?”

Pedro tomou a dianteira e respondeu: “Tu és o Messias”, isto é “o libertador do povo” que os judeus esperavam. Em grego: “Tu és o Cristo”.

Cristo é a tradução da palavra grega khristos que quer dizer ”Ungido” ou “Escolhido por Deus”.

Pedro deu uma resposta certíssima, mas faltava ver se ele compreendia bem o que é queriam dizer as palavras certas com que respondeu

Mas o diálogo não podia ficar por aqui.

Pedro podia estar muito satisfeito por ter acertado na resposta, mas o que ele entendia por “Messias”, por “Cristo”, por “Salvador prometido”, como vamos ver, era afinal o oposto do que Jesus entendia como sendo a missão que Deus-Pai lhe tinha dado como Messias.

Jesus começou então a apresentar aos discípulos, abertamente, o que lhe iria acontecer nos tempos que se iam seguir: os grandes sofrimentos, a rejeição por parte dos mais responsáveis, a condenação, a tortura e a morte e três dias depois a ressurreição, a vitória sobre a morte e o desamor.

Jesus ensinou-lhes que tais acontecimentos até à sua ressurreição, não eram uma fatalidade, mas um caminho incompreensível, que Deus-Pai queria que Ele seguisse.

Ora, Pedro, apesar da resposta certa que tinha dado, não conseguia aceitar que o “Messias-Salvador” fosse passar por tudo isso.

Esse cenário com fraqueza, rejeição e morte na cruz, não correspondia em nada à imagem que os judeus tinham do único Deus que seria enviado para salvar Israel.

As pessoas que esperavam que Deus castigasse os que que praticavam o mal e recompensasse os bons, não podiam aceitar a ideia de que o Enviado de Deus pudesse ser derrotado e morto.

Então, com o seu ímpeto habitual, Pedro chamou Jesus à parte, e cheio de amizade, repreendeu-o:

«Que conversa é essa Mestre? A partir de agora e, tendo em conta que és mesmo o Messias, não há inimigos que nos ponham as mãos em cima, a tua força do Alto vence-os a todos!”

Na sua lógica, o Messias tinha todo o poder de Deus para derrotar os inimigos, e por isso quer convencer Jesus a corrigir o caminho que lhes tinha anunciado que ia seguir.

Como é que Jesus respondeu a esta iniciativa de Pedro?

”Vai-te Satanás! porque não compreendes as coisas de Deus,

mas só as dos homens».

Jesus é duríssimo para com Pedro e diz-lhe: ”Vai-te Satanás!”, que são as mesmas palavras que Jesus dirigiu ao Demónio quando este o foi tentar no deserto.

E, isto é dito, pouco depois de o ter elogiado pela resposta certíssima que tinha dado sobre quem Ele era.

Habitualmente as pessoas consideram que a atitude mais grave de Pedro foi ter negado três vezes que era discípulo de Jesus, quando este estava a ser condenado à morte por crucifixão.

Mas nessa ocasião, quando Jesus ia com a cruz às costas, dirigiu simplesmente um olhar cheio de misericórdia para Pedro, sem lhe dizer uma só palavra. E esse olhar foi compreendido por Pedro que foi chorar, profundamente arrependido.

Mas com atitude, Pedro, com toda a amizade queria afastar Jesus do caminho que o levaria à condenação, à tortura e à morte por crucifixão, onde está a gravidade a ponto de Jesus lhe ter gritado: ”Vai-te  Satanás!”

Pedro era o apóstolo em quem Jesus tinha maior confiança e a quem tinha dado a maior responsabilidade. Era precisamente Pedro que, com a melhor das intenções, O estava a procurar convencer que utilizasse os seus poderes de Messias, para destruir os planos dos que O queriam condenar à morte.

Pedro, o homem de confiança de Jesus, estava a tentá-lO, para o afastar da Vontade de Deus.

Esta conversa é uma das mais importantes dos Evangelhos.

E porquê?

Porque desde o tempo de Jesus até aos nossos dias, caímos na mesma atitude de Pedro: ficamos muito satisfeitos por darmos respostas certas sobre a nossa fé de cristãos, mas falta-nos conhecer bem como é que Jesus viveu para fazer avançar a aventura a que chamou o “Reinado de Deus”.

O que se passou com Pedro demonstra que leva muito tempo a aderir à partilha das prioridades de Jesus.

Jesus perguntou aos seus discípulos quem eles pensavam que Ele era.

Pedro respondeu muito bem: "És o Messias".

Mas o que é que essas palavras significavam para ele?

Pela atitude que Pedro teve, depois de ter recebido o ensinamento de Jesus sobre o que lhe iria acontecer, constatamos que ele pensava num Messias poderoso que devia usar o Seu poder, destruindo as forças do Mal.

Não tinha ainda compreendido que Jesus era um Messias cuja força passava pela sua fraqueza.

O Deus que descobrimos, graças a Jesus, não esmaga o Mal, mas em Jesus, seu Filho e seu Enviado, transforma o Mal em Bem.

Jesus não escapou à cruz, mas revelou a incapacidade de o Mal ter a última palavra, para vencer com a Vida e com o Amor.

E hoje?

A questão que Jesus colocou aos discípulos continua a ser decisiva para nós.

Como vamos responder à pergunta direta que Jesus nos faz:

“E para ti, quem é que Eu sou?”

O que é que esperamos de Jesus nas nossas interações com Deus e de Deus connosco?

Sabendo que Jesus é um Libertador que não evitou o sofrimento, mas que o transformou, será que ainda estamos dispostos a continuar a ser seus discípulos e a segui-Lo na confiança e no modo de viver que foi o d’Ele?

 

frei Eugénio, op (12.09.2021)


2024-09-07

Diálogo com o Evangelho

Diálogo com o Evangelho do XXIII Domingo do Tempo Comum, 8 de setembro, por Frei Eugénio Boléo, no programa de rádio da RCF "Construir sur la roche". Pode ouvir aqui. (gravado em setembro de 2021)

 

 

EVANGELHO (Mc. 7, 31-37)

Naquele tempo, Jesus deixou de novo a região de Tiro e, passando por Sidónia, veio para o mar da Galileia, atravessando o território da Decápole.
Trouxeram-Lhe então um surdo que mal podia falar e suplicaram-Lhe que impusesse as mãos sobre ele.
Jesus, levando-o a sós para longe da multidão, meteu-lhe os dedos nos ouvidos
e com saliva tocou-lhe a língua.
Depois, erguendo os olhos ao Céu, suspirou e disse-lhe:
«Effathá», que quer dizer «Abre-te».
Imediatamente se abriram os ouvidos do homem, soltou-se-lhe a prisão da língua
e começou a falar corretamente.
Jesus recomendou que não contassem nada a ninguém.
Mas, quanto mais lho recomendava, tanto mais intensamente eles o apregoavam.
Cheios de assombro, diziam: «Tudo o que faz é admirável: faz que os surdos oiçam e que os mudos falem».

DIÁLOGO

O Evangelho de hoje fala-nos de outro milagre de Jesus. Podemos imaginar como se passou.
Vemos Jesus a fazer uma sucessão de gestos simbólicos.
Marcos diz-nos que Jesus levou o surdo para o lado, a sós para longe da multidão.
A palavra utilizada para "o levar de lado (apo-lambano) é geralmente traduzida como "receber" em vez de "levar". Ficamos assim com a impressão que Jesus ao afastar-se com o homem, estava a recebê-lo na sua companhia privada, para um encontro mais pessoal, que não podia acontecer no meio de uma multidão.
Jesus realizou então a cura, colocando os seus dedos nos ouvidos do homem e pondo a sua própria saliva na sua língua.
Esses gestos de cura eram típicos do meio cultural de Jesus.
No entanto, a vontade de tocar uma pessoa doente era um sinal de solidariedade e o partilhar a sua própria saliva com o homem, era um gesto de intimidade especial.
Depois de fazer estes gestos, Jesus assumiu uma atitude de oração, de relação com Deus Pai, “Ergueu os olhos ao Céu” e “suspirou”, que no original significa rezar a pedir com muita intensidade. São Paulo (Rom 8, 26) diz que é o modo de fazer do Espírito Santo “que intercede por nós com suspiros sem palavras” .
Então Jesus com a intensidade dum forte suspiro, diz “Effatha!”, uma palavra em aramaico, a língua que Jesus falava, que se traduz "Abre-te".
Imediatamente o surdo-mudo se abriu à comunicação, ouvindo e falando.
Jesus não diz aos ouvidos "Abram-se" e à boca "Abre-te". É ao deficiente que diz "Abre-te".
É como se Jesus lhe tivesse dito: "Ouve, mas não basta ouvires palavras, também tens de ouvir, com o coração». E completasse: “Fala, mas não basta dizeres palavras, é preciso que também comuniques”.
O evangelista Marcos tem o cuidado de nos dizer que o falar do homem só se tornou compreensível depois de os seus ouvidos terem sido abertos.
Tanto a nível natural como a nível espiritual, a audição deve preceder a fala.
Até a sabedoria popular diz que Deus nos deu dois ouvidos e uma boca para escutarmos duas vezes mais do que falamos.
Jesus ensina-nos aqui que o importante nas relações humanas é haver encontro de pessoas.
Jesus quer que o nosso coração e toda a nossa pessoa escutem as palavras que Ele nos dirige.
As suas palavras são-nos dirigidas pessoalmente na intimidade dos nossos corações, como o fez com o surdo-mudo.
Jesus vem para curar e salvar a pessoa inteira, para dar sentido às nossas vidas, sejam quais forem os acontecimentos que as vão marcando.
Que a palavra que Jesus disse com toda a sua energia “Effatha”, possa continuar a ser ouvida no nosso íntimo, enchendo-nos de confiança que o Amor de Deus pode realizar milagres inimagináveis, para bem de toda a humanidade, através de cada um de nós.

     frei Eugénio, op (2021.09.09)

2024-08-31

Diálogo com o Evangelho

Diálogo com o Evangelho do XXII Domingo do Tempo Comum, 1 de setembro, por Frei Eugénio Boléo, no programa de rádio da RCF "Construir sur la roche". Pode ouvir aqui. (gravado em agosto de 2021)

 

 

 

EVANGELHO   Mc 7,1-8, 14-15, 21-23

Naquele tempo, reuniu-se à volta de Jesus um grupo de fariseus e alguns escribas

que tinham vindo de Jerusalém.

Viram que alguns dos discípulos de Jesus comiam com as mãos impuras, isto é, sem as lavar.

Na verdade, os fariseus e os judeus em geral

não comem sem ter lavado cuidadosamente as mãos, conforme a tradição dos antigos.

Ao voltarem da praça pública, não comem sem antes se terem lavado.

E seguem muitos outros costumes a que se prenderam por tradição,

como lavar os copos, os jarros e as vasilhas de cobre.

Os fariseus e os escribas perguntaram a Jesus:

«Porque não seguem os teus discípulos a tradição dos antigos, e comem sem lavar as mãos?»

Jesus respondeu-lhes:

«Bem profetizou Isaías a respeito de vós, hipócritas, como está escrito:

‘Este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de Mim.

É vão o culto que Me prestam, e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos’.

Vós deixais de lado o mandamento de Deus, para vos prenderdes à tradição dos homens».

Depois, Jesus chamou de novo a Si a multidão e começou a dizer-lhe:

«Escutai-Me e procurai compreender. Não há nada fora do homem

que ao entrar nele o possa tornar impuro.

O que sai do homem é que o torna impuro; porque do interior do homem é que saem as más intenções:

imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão, inveja, difamação, orgulho, insensatez.

Todos estes vícios saem do interior do homem e são eles que o tornam impuro».


 

DIÁLOGO

A passagem do Evangelho que acabamos de ler, começa com uma discussão de Jesus com as autoridades da época (fariseus e escribas) sobre a lavagem das mãos antes das refeições.

Para os judeus do tempo de Jesus, a lavagem não era uma prática sanitária, uma questão de higiene, mas uma norma religiosa que não podia deixar de ser cumprida

Quando dizemos «pureza», «puro», queremos referir-nos ao que contrasta com «sujo», «infestado», «manchado», «poluído».

Todas estas situações se referem a diversos ambientes do mundo físico.

Fala-se, por exemplo, de um «caminho imundo», de «ar poluído» , de «casa infestada».

Mas a discussão de Jesus, não foi sobre a higiene, mas sobre a noção de pureza ritual. Esta noção é bastante difícil de compreender, pois não tem a ver com a sujidade, nem com a falta de limpeza.

A maioria dos rituais de purificação existiam muito antes que se soubesse que os micróbios causam doenças.

Além disso, mesmo as pessoas que são exigentes com a limpeza pessoal e dos objetos, também elas têm de praticar esses ritos.

A chamada pureza ritual é a condição em que as pessoas devem estar para poderem participar em determinados atos religiosos, especialmente os de adoração duma divindade.

As condições para se considerar que se está apto para pratica do culto variam de religião para religião.

Uma grande parte dessas impurezas podem, no entanto, ser purificadas através dos chamados ritos de purificação sobretudo em relação com a água, mas também com rituais mais elaborados.

Alguns exemplos: Dentro do Budismo japonês, uma bacia chamada de «tsukubai» é fornecida à entrada dos templos para que os crentes façam abluções. Também é usado para a cerimónia do chá.

No Hinduísmo, uma parte importante da purificação ritual é o banho de todo o corpo, especialmente em rios considerados sagrados como o Ganges.

No Judaísmo e no Islão as leis da pureza ritual dizem respeito a alimentos, a líquidos, a roupas e utensílios e a pessoas contactadas pelos crentes.

No Cristianismo, encontramos variados costumes e tradições, segundo as épocas e as zonas do mundo.

Lembro apenas as mães que davam à luz um filho, não podiam participar nos batismos dos filhos.

A não-participação em algumas missas dominicais, impedia os fiéis de participar na comunhão nas Eucaristias seguintes.

As mulheres sem um véu na cabeça não podiam entrar numa igreja e ainda menos participar numa Eucaristia ou cerimónia litúrgica.

Uma das principais barreiras do relacionamento entre judeus e os não-judeus (os chamados «pagãos») eram precisamente as normas sobre o «puro» e o «impuro».

Jesus vai proclamar de modo claro:” Não há nada fora do homem que ao entrar nele o possa tornar impuro.”

Nenhuma sujidade «material» pode tornar o homem impuro no sentido moral, ou seja, interior.

A pureza moral tem a sua fonte exclusiva no interior do homem: provém do «coração».

Já os profetas, os sábios e os salmistas, proclamavam que os rituais de purificação e as cerimónias no Templo não podiam obter a pureza moral.

Não se deve colocar ao mesmo nível, o que é secundário, neste caso, as tradições humanas, com o que é essencial na vida moral: fazer a Vontade de Deus, pôr em prática o que Ele quer, para o bem de todas as pessoas e da criação inteira.

Em vez de centrarmos as nossas energias para nos deixarmos abrir ao que Deus quer, que podemos conhecer pela sua Palavra, sobretudo graças a Jesus, virámo-nos para nós próprios, procurando fazer determinados gestos e rituais religiosos, ficando satisfeitos por os termos concretizado bem.

Esta auto-satisfação nos rituais bem cumpridos, leva-nos também a olharmos com certa superioridade para os que não os cumprem.

Ora o ensinamento de Jesus, orienta-nos para a purificação do nosso interior, através do nosso modo de amar ou desamar o próximo, como Jesus viveu e ensinou.

Como o apóstolo Tiago dirá mais tarde: "Diante de Deus nosso Pai, a forma pura e irrepreensível de praticar a religião é ajudar os órfãos e as viúvas na sua aflição, e mantermo-nos livres da corrupção no meio do mundo" (Tiago 1, 27).

Jesus propõe-nos que despertemos a nossa consciência, para fazermos discernimentos mais conformes com o Seu Evangelho

Demasiadas vezes, deixámo-lo adormecer.

Agimos, sem nos interrogarmos sobre as nossas intenções, nem sobre as consequências para os outros e para nós mesmos, dos nossos atos.

Jesus mostra-nos que no centro da moralidade evangélica está a consciência, que se deve deixar iluminar e guiar pela sua confiança em Jesus e pelo Evangelho.

Jesus quer que atuemos com liberdade interior, por nós próprios, levando a sério as nossas responsabilidades.

Claro que frequentemente não conseguimos agir como Jesus teria feito no nosso lugar. Há todo um caminho de vida a ser feito, há falhas, há erros, há desamor, mas o que conta é procurarmos sempre que a consciência seja iluminada pela Palavra de Deus e que coloquemos nela o nosso coração.

frei Eugénio, op (2021.08.29)


2024-08-25

Diálogo com o Evangelho

Diálogo com o Evangelho do XXI Domingo do Tempo Comum, 25 de agosto, por Frei Eugénio Boléo, no programa de rádio da RCF "Construir sur la roche". Pode ouvir aqui. (gravado em agosto de 2021)

 

 

Evangelho (Jo. 6, 60-69)

Naquele tempo, muitos discípulos, ao ouvirem Jesus, disseram:

«Estas palavras são duras. Quem pode escutá-las?»

Jesus, conhecendo interiormente

que os discípulos murmuravam por causa disso, perguntou-lhes: 

«Isto escandaliza-vos?

E se virdes o Filho do homem

subir para onde estava anteriormente?

O espírito é que dá vida, a carne não serve de nada.

As palavras que Eu vos disse são espírito e vida.

Mas, entre vós, há alguns que não acreditam».

Na verdade, Jesus bem sabia, desde o início,

quais eram os que não acreditavam

e quem era aquele que O havia de entregar.

E acrescentou:

«Por isso é que vos disse: Ninguém pode vir a Mim, se não lhe for concedido por meu Pai».

A partir de então, muitos dos discípulos afastaram-se e já não andavam com Ele.

Jesus disse aos Doze:

«Também vós quereis ir embora?»

Respondeu-Lhe Simão Pedro: «Para quem iremos, Senhor?

Tu tens palavras de vida eterna.

Nós acreditamos e sabemos que Tu és o Santo de Deus».


 

DIÁLOGO

A página do Evangelho de São João que lemos, começa com muitos dos que seguiam Jesus a dizer: «Estas palavras são duras. Quem pode escutá-las?»

A partir de então muitos dos que desejavam ser discípulos de Jesus afastaram-se e não andaram mais com Ele.

Quais seriam essas palavras que Jesus lhes disse que eram tão insuportáveis?

Jesus disse-lhes que Ele era o “pão que desceu do Céu” e que “quem comer a minha carne e beber o seu sangue, permanece em mim e eu nele”.

Estes ensinamentos, se forem entendidos à letra como sendo ‘comer a carne e beber o sangue de uma pessoa humana’ e de ser ‘pão que desceu do Céu são, de facto, incompreensíveis e demasiado difíceis de serem aceites.

Jesus não explica como se tornará carne e sangue, longe disso, e até acrescenta o anúncio da sua ressurreição: "E quando virdes o Filho do Homem subir para onde antes estava?»

João apresenta as reações dizendo simplesmente: “A partir de então, muitos dos discípulos afastaram-se e já não andavam com Ele.”.

O texto grego, à letra, diz: “voltaram para trás”, preferindo voltar ao que conheciam e praticavam antes de ouvirem a pregação de Jesus.

Jesus faz então aos discípulos uma pergunta muito direta: «Também vós quereis ir embora?»

É uma pergunta clara, um pouco como a de um marido que pergunta à sua mulher, ou uma mulher que pergunta ao seu marido: «Amas-me como eu sou, confias em mim?»

Não esperam por explicações, mas pedem apenas um «sim» ou um «não», quer seja expresso por uma palavra, um gesto ou um olhar.

O que importa é ter uma resposta clara. Se a resposta é "sim" é a confiança do outro que é manifestada claramente.

João não indica qual foi o sentimento de Jesus ao ver a debandada dos que o seguiam. O evangelista apenas nos diz que Jesus sabia que alguns discípulos tinham falta de fé e que alguém o iria trair.

É verdade, que Jesus disse aos discípulos, que eles só poderiam vir ter com Ele com a ajuda da graça de Deus.

Mas, podemos pensar: será que Jesus contava que tantos o iriam abandonar e que a multidão iria ficar reduzida apenas a doze?

 Talvez consigamos imaginar a expressão do seu rosto e o seu tom de voz quando perguntou aos apóstolos: «Também vós quereis ir embora?»

 Em todo o Evangelho de João, este é, provavelmente, um dos momentos em que Jesus esteve mais fragilizado.

Assim, São Pedro e os apóstolos quiseram ficar com Jesus, porque tinham total confiança n’Ele.

Os 12 apóstolos, mesmo não tendo compreendido muitos dos ensinamentos e das atitudes de Jesus, confiaram. Abriram-se ao invisível, ao que não compreendiam.

Eles não olhavam para si próprios.

Os seus olhares eram inspirados pelas palavras, ações e atitudes de Jesus, que manifestavam a Vontade de Deus: "Tu tens palavras da vida eterna".

Os apóstolos, pela fé, veem Jesus, homem como eles, a quem podem tocar e com quem comem, como sendo “o Santo de Deus", o Messias Salvador.

O que significa permanecer com Jesus?

Significa que queremos ficar com ele, mesmo quando temos surpresas com que não contávamos, ou temos de seguir caminhos desconhecidos.

São riscos a correr por quem decide ficar com Jesus.

Não se confia em alguém da mesma maneira quando se tem 15, 40 ou 60 anos. Ao longo da vida, temos de ir fazendo novas escolhas.

É como nos casais, onde os dois têm de renovar cada dia os seus «sins », se querem continuar juntos.

Temos de recomeçar cada dia os nossos compromissos.

O que se passou com Jesus e os discípulos naquele tempo do relato do Evangelho, antecipa e anuncia todas as situações de crise, de grandes mudanças, quer na vida pessoal, quer nas comunidades cristãs, quer na Igreja, que são dolorosas, mas que nos põem diante de escolhas a fazer, para permanecermos fiéis a opções tomadas.

Estejamos nós prontos a responder, com uma escolha livre e meditada, à pergunta que Jesus Ressuscitado nos continua a fazer:

«Também vós quereis ir embora?»

Que a nossa resposta possa ser «Para quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna.”

E assim, vamos renovando o nosso compromisso pessoal e público com Jesus e o Reinado de Deus, tendo os nossos corações cheios de rostos fraternos.

        frei Eugénio, op (22.08.2021)


2024-08-11

Diálogo com o Evangelho

Diálogo com o Evangelho do XIX Domingo do Tempo Comum, 11 de agosto, por Frei Eugénio Boléo, no programa de rádio da RCF "Construir sur la roche". Pode ouvir aqui. (gravado em agosto de 2021)

 

 

 Evangelho (Jo. 6, 41-51)

Naquele tempo, os judeus murmuravam de Jesus, por Ele ter dito: «Eu sou o pão que desceu do Céu».
E diziam: «Não é Ele Jesus, o filho de José? Não conhecemos o seu pai e a sua mãe? Como é que Ele diz agora: "Eu desci do Céu"?».
Jesus respondeu-lhes: «Não murmureis entre vós.
Ninguém pode vir a Mim, se o Pai, que Me enviou, não o trouxer; e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia.
Está escrito no livro dos Profetas: "Serão todos instruídos por Deus". Todo aquele que ouve o Pai e recebe o seu ensino vem a Mim.
Não porque alguém tenha visto o Pai; só Aquele que vem de junto de Deus viu o Pai.
Em verdade, em verdade vos digo: quem acredita tem a vida eterna.
Eu sou o pão da vida.
No deserto, os vossos pais comeram o maná e morreram.
Mas este pão é o que desce do Céu, para que não morra quem dele comer.
Eu sou o pão vivo que desceu do Céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que Eu hei de dar é a minha carne, que Eu darei pela vida do mundo».
 

DIÁLOGO

Quando Jesus disse: "Eu sou o pão que desceu do céu", os seus ouvintes compreenderam o suficiente para não o rotularem de louco, por afirmar ser "pão da vida", mas vão distanciar-se e mesmo opor-se, por causa da afirmação «que desceu do Céu», o que queria dizer que Ele se considerava o Enviado de Deus.

 

Ser “pão da vida” quer dizer que é a Pessoa mesmo de Jesus que nos pode fazer viver para sempre, porque Ele é a Palavra de Deus tornada humana.

 

Jesus é Aquele que recebe tudo de Seu Pai: a sua missão, as suas obras, as suas palavras, até mesmo os seus discípulos.

 

Se Jesus é o único que revela completamente Deus, é porque é o único que conhece perfeitamente Deus-Pai.

 

Na ocasião da sua vida, em que Jesus fez esta pregação, estava a encontrar um ambiente de cada vez maior hostilidade e agressividade da parte das autoridades religiosas e políticas, a que o evangelista João chama “judeus”. Não se refere a todo o povo hebreu, mas somente às autoridades de Jerusalém que tinham tomado posição contra Jesus, até conseguirem que Ele fosse condenado à morte por crucifixão.

 

De modo mais amplo, o evangelista quer referir-se a todos os que recusaram acolher e escutar Jesus.

Os “judeus” falavam do pai de Jesus, José. Mas Jesus falava do seu verdadeiro Pai. Por sua vez, é o Pai que leva as pessoas até Jesus, para que elas reconheçam que Ele é o alimento que desceu do Céu.

 

As autoridades estavam firmemente convencidas que ninguém que eles conhecessem com origens tão humildes como as de Jesus, pudesse ser o Messias de Deus. Recusavam-se a acreditar que Jesus, um homem demasiado conhecido em Nazaré, pudesse ser o Enviado de Deus.

Ao mesmo tempo, nessa recusa, também negavam que Deus se pudesse preocupar com eles e que tivesse a iniciativa de revelar algo de novo sobre Ele e o Seu Projeto para o mundo.

 

Lamentavelmente, as pessoas a quem Jesus se dirigiu em Cafarnaum, contentaram-se com “murmurações”, isto é, falar mal de alguém, sem falar diretamente a essa pessoa, num EU-TU, que permita respeito mútuo, mesmo na discordância.

Jesus vai interpelá-los, para que eles deixem a «murmuração» e se decidam a dialogar com Ele acerca dos argumentos em que baseiam a sua oposição. Se o fizessem, poderiam pôr-se em questão e abrir-se ao Enviado de Deus.

 

E a nós, leitores do Evangelho neste tempo em que vivemos, a que é que Jesus nos convida?

Parece-me que antes de mais, Jesus está a desafiar-nos a reconhecermos quanto as nossas «murmurações», com queixas e críticas frequentes sobre o que se passa de mal, podem tornar-se num obstáculo para ouvirmos e acolhermos os convites que Deus nos vai dirigindo, através de pessoas e de acontecimentos.

Murmurar é mais fácil do que acreditar e rezar.

 

Se acreditamos que o Pai de Jesus é também nosso Pai, «Abba», Pai querido, e se acreditamos que Jesus é o Seu Enviado, que veio de junto do Pai, e que nos deixou o Seu Espírito, é a Ele que diretamente que nos podemos dirigir.

Quer nas nossas lágrimas e provações, quer nas situações que nos chegam de mais perto ou de mais longe, com tantos dramas humanos, é a Jesus que nos podemos dirigir, num EU-TU, interpelando-O e questionando-O sobre o que se passa e nos indigna e faz sofrer tantas pessoas, quer fazendo os possíveis por O escutar, com confiança, para acolhermos os seus apelos à nossa colaboração com Ele.

 

A última frase desta passagem do Evangelho é surpreendente:

“E o pão que Eu hei-de dar é a minha carne, que Eu darei pela vida do mundo”.

A “carne” de que Jesus fala aqui não é o seu organismo biológico, é toda a sua Pessoa que vive e age através dos seus atos e palavras.

E “comer”, deve ser entendido no seu significado simbólico:

Jesus quer permanecer em nós e nós com Ele (Jo 6,56).

É esta inimaginável intimidade que nos é oferecida, na fé.

 

Deus, no Seu Amor por nós, não desiste de nós. Podemos mesmo dizer, que Deus já não pode viver sem nós!

 

 frei Eugénio, op (07.08.2021)