2024-11-03

Diálogo com o Evangelho

Diálogo com o Evangelho do XXXI Domingo do Tempo Comum, 3 de novembro, por Frei Eugénio Boléo, no programa de rádio da RCF "Construir sur la roche". Pode ouvir aqui. (gravado em Outubro de 2021)

 

 

EVANGELHO   (Mc 12, 28-34)

Naquele tempo, aproximou-se de Jesus um escriba e perguntou-Lhe: «Qual é o primeiro de todos os mandamentos?».
Jesus respondeu: «O primeiro é este: "Escuta, Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor.
Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças".
O segundo é este: "Amarás o teu próximo como a ti mesmo". Não há nenhum mandamento maior que estes».
Disse-Lhe o escriba: «Muito bem, Mestre! Tens razão quando dizes: Deus é único e não há outro além dele.
Amá-lo com todo o coração, com toda a inteligência e com todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo, vale mais do que todos os holocaustos e sacrifícios».
Ao ver que o escriba dera uma resposta inteligente, Jesus disse-lhe: «Não estás longe do reino de Deus». E ninguém mais se atrevia a interrogá-lo.
 

DIÁLOGO

Certamente que teríamos uma grande alegria se ouvíssemos Jesus dizer-nos: «Não estás longe do Reino de Deus».
Foi o que Jesus disse a este escriba que foi ter com Ele, pedindo-lhe uma orientação segura para a sua vida.

Também nós procuramos relacionar-nos com o Deus Verdadeiro e Vivo.
A nossa busca de Deus, tal como a do escriba, deve basear-se em alicerces firmes.

Jesus dá-nos estes alicerces quando diz: “Amarás o Senhor teu Deus e amarás o teu próximo como a ti mesmo”. 
De facto, o chamado "primeiro mandamento" não é propriamente um mandamento, é um apelo, pois diz: «Escuta Israel. Eu sou Iahweh, vosso Deus, que vos tirei do Egito, da casa da servidão" (Dt 5,6).
E se Deus é Aquele que, no Seu Amor, toma a iniciativa de nos libertar, é normal que Ele nos convide a amá-Lo livremente. 
«Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças.»

Não é apenas um «mandamento», é uma convicção vivida pessoalmente, com todas as nossas energias: «Estas palavras que vos dou hoje permanecerão no vosso coração».
Jesus, não criou estes mandamentos, pois já estavam presentes no Antigo Testamento, na Lei da Aliança que Deus tinha feito com o povo, por intermédio de Moisés. 
O que Jesus fez foi unir intimamente os dois mandamentos entre si. 
À pergunta: «Qual é o maior mandamento?» 
Jesus responde que não é um só, mas que são dois, inseparáveis entre si. 

Não há amor a Deus sem amor ao próximo e não há amor ao próximo sem amor a Deus. O evangelista João di-lo, duma forma muito clara, numa das suas cartas: «Se alguém diz: 'Eu amo Deus', mas odeia o seu irmão, ele é um mentiroso. 
Pois aquele que não ama o seu irmão, que ele vê, é incapaz de amar a Deus, que ele não vê.» (I João 4, 20)

Num encontro de formação de jovens para o Crisma, queria criar-se um símbolo que representasse a união e a complementaridade destes amores. E, assim surgiu a ESTRELA DO AMOR (com 5 pontas como as estrelas-do-mar).

Numa ponta: o amor A DEUS. 
Noutra, o amor AO PRÓXIMO.
E numa terceira, o amor A SI-MESMO

Mas quais serão os outros dois amores que faltam na estrela? 
Para que estes três amores possam ser vividos por nós, há dois que são os mais fundamentais e quase sempre os mais esquecidos.

Quais serão eles?

É o AMOR DO PRÓXIMO e o AMOR DE DEUS.
No nosso desenvolvimento e crescimento num amor saudável a Nós-Mesmos, para nos podermos tornar Pessoas bem humanas, dependemos de muitas pessoas e de circunstâncias que elas nos proporcionam.

Assim, o AMOR DO PRÓXIMO é essencial nas nossas vidas.
Mas para amar a Deus, que não vemos, nem podemos ver neste mundo e também para termos confiança na sua Bondade, quando conhecemos as histórias de tantas pessoas e dos variados povos da Humanidade, não nos podemos apoiar em argumentações que só convencem quem já está convencido.

Precisamos, sim, de descobrir que Deus tem Amor por mim, por cada um de nós, por todas as pessoas que vêm a este mundo. Precisamos descobrir o AMOR DE DEUS.

É uma graça muito grande experimentarmos que vale a pena por toda a nossa confiança nesse AMOR DE DEUS.
Para nós cristãos, no centro da Estrela do Amor está Jesus de Nazaré, o Filho de Deus e nosso irmão, que é a ponte que unifica estes 5 amores.

Que esta Estrela dos 5 amores: 
Amor De Deus, Amor A Deus, Amor Do Próximo, Amor Ao Próximo e Amor A Nós-mesmos, nos acompanhe sempre. 

    frei Eugénio, op (30.10.2021)

2024-10-27

Diálogo com o Evangelho

Diálogo com o Evangelho do XXX Domingo do Tempo Comum, 27 de outubro, por Frei Eugénio Boléo, no programa de rádio da RCF "Construir sur la roche". Pode ouvir aqui. (gravado em Outubro de 2021)

 

 

EVANGELHO   (Mc 10, 46-52)

Naquele tempo, quando Jesus ia a sair de Jericó com os discípulos e uma grande multidão, estava um cego, chamado Bartimeu, filho de Timeu, a pedir esmola à beira do caminho.


Ao ouvir dizer que era Jesus de Nazaré que passava, começou a gritar: «Jesus, Filho de David, tem piedade de mim».
Muitos repreendiam-no para que se calasse.

Mas ele gritava cada vez mais: «Filho de David, tem piedade de mim».
Jesus parou e disse: «Chamai-o». 

Chamaram então o cego e disseram-lhe: «Coragem! Levanta-te, que Ele está a chamar-te».
 O cego atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus.
 

Jesus perguntou-lhe: «Que queres que Eu te faça?». 

O cego respondeu-Lhe: «Mestre, que eu veja».


Jesus disse-lhe: «Vai: a tua fé te salvou». 

Logo ele recuperou a vista e seguiu Jesus pelo caminho.


 
DIÁLOGO



Quando lemos esta página do Evangelho, conhecida como “a cura do cego de Jericó” com atenção, descobrimos que há nela muito mais do que uma cura.
A situação deste infeliz mendigo cego, chamado Bartimeu é descrita de modo comovente: está sozinho (à beira do caminho), afastado das outras pessoas que circulam nos seus afazeres, sem esperança de  sair da situação de mendigo. Ao ouvir dizer que Jesus de Nazaré estava a passar ali pelo caminho, começa a gritar: "Jesus, Filho de David, tem piedade de mim!”
Esta é a primeira vez que este título aparece no Evangelho de Marcos. Bartimeu, apesar de tão limitado na sua cegueira, é a primeira pessoa a reconhecer Jesus como o Messias (“Filho de David”).
O evangelista salienta que muitos dos que iam com Jesus, começaram a tentar silenciá-lo. É um marginal, desprezado e por isso o lugar que lhe é atribuído é a borda do caminho. As pessoas que querem escutar Jesus não querem ser incomodadas com aquele alarido que ele está a fazer. Que fique onde está e que não queira juntar-se a elas!
Mas nada silenciou os gritos de pedido de socorro de Bartimeu. Ele gritava cada vez mais forte “Filho de David, tem piedade de mim! “
Nos Evangelhos, muitas vezes Jesus ouve aqueles que os discípulos não querem ouvir e vê os que as pessoas não querem ver.
Jesus vê e ouve Bartimeu, pára e manda-o chamar.
A atenção que Jesus lhe dá, faz com que o olhar da multidão começasse a mudar: em vez de o marginalizarem como até ali, começaram a encorajá-lo dizendo:  «Coragem ! Levanta-te, que Ele está a chamar-te».
Bartimeu começou a andar, até mesmo a saltar, na direção de Jesus.
Ao dar um pulo, deitou fora a capa (que os mendigos estendiam no chão para receber as esmolas). Deixou de estar sozinho e ao mesmo tempo deixou de ser mendigo.
Vale a pena ter em atenção o modo tão discreto do evangelista Marcos ao se referir a esta cura - nem um gesto, nem uma palavra de Jesus!
O que está em causa é o milagre da fé de Bartimeu.
O cego não é “curado", mas “salvo”, e salvo pela fé que manifestou em Jesus.
Como é frequente na Bíblia, recuperar a vista é o sinal de acesso à fé.
É a fé que permite a Bartimeu ver o Messias que é Jesus.
“Ver Jesus” significa "acreditar n’Ele", é tornar-se seu discípulo.
Não será Bartimeu um modelo do cristão que “reza sempre sem desanimar” (Luc 18, 1).
Bartimeu não se intimidou com as vozes que queriam que ele continuasse à beira do caminho, mas gritou cada vez mais alto e com mais força, cheio de confiança que o Filho de David, o iria ouvir e que teria misericórdia da situação em que vivia.
Não é verdade que as nossas orações, de mãos estendidas, são como pedidos de esmola que dirigimos a Deus?
Quando éramos adolescentes, ainda não tínhamos feito a experiência dos nossos limites e por isso ainda não tínhamos que os aceitar.
Tornamo-nos adultos à medida que passamos pelas fragilidades e pelos limites e fomos aprendendo a reconhecê-los e a viver com eles.
Deus, na sua “pedagogia”, faz com que a oração nos faça tomar consciência das nossas limitações mais profundas, fazendo crescer em nós o desejo de confiarmos cada vez mais n’Ele.
Bartimeu não grita para que Jesus tenha conhecimento da sua situação desgraçada, mas para manifestar a sua confiança na misericórdia d’Aquele que ele reconhece como Messias e que o pode salvar, como e quando entender.
A nossa oração não se destina a chamar a atenção de Deus para o que se está a passar, quer connosco mesmos e os nossos mais próximos, quer com todos e com tudo o que se passa no nosso mundo, o que é completamente inútil.
Jesus disse claramente: “ o vosso Pai sabe do que tendes necessidade antes de lhO pedirdes “ (Mt 6, 8).
Mas Jesus também nos diz: “Pedi e vos será dado; buscai e achareis; batei e vos será aberto. Pois todo o que pede, recebe; o que busca, encontra; e ao que bate, se abrirá” (Luc 11, 9-11).
Jesus, em nome do Seu Pai, manifesta a Sua confiança em nós e faz apelo à nossa colaboração com Deus, pela oração.
É o que Jesus faz com Bartimeu perguntando-lhe: «Que queres que Eu te faça?».
Para responder a Jesus, ele irá dizer claramente o que pede: "Mestre, que eu veja!”.
Apesar de não sermos cegos, também devemos pedir na nossa oração: « Jesus, faz com que eu veja à tua maneira »

    frei Eugénio, op (24.10.2021)

 

2024-10-19

Diálogo com o Evangelho

Diálogo com o Evangelho do XXIX Domingo do Tempo Comum, 20 de outubro, por Frei Eugénio Boléo, no programa de rádio da RCF "Construir sur la roche". Pode ouvir aqui. (gravado em Outubro de 2021)

 

 

EVANGELHO   (Mc 10, 42-45)

Naquele tempo,
Jesus chamou os Doze e disse-lhes:
Sabeis que os que são considerados como chefes das nações
exercem domínio sobre elas
e os grandes fazem sentir sobre elas o seu poder.
Não deve ser assim entre vós:
quem entre vós quiser ser grande, seja o vosso servidor,
e quem quiser entre vós ser o primeiro, seja o servo de todos;
porque o Filho do Homem não veio para ser servido,
mas para servir e dar a vida pela redenção de todos».

DIÁLOGO

No Evangelho de hoje, Jesus dirige-se aos doze apóstolos depois de uma discussão que houve entre eles sobre quem eram os mais importantes.
Os apóstolos vêem-se, cada um deles, num lugar muito próximo de Jesus solenemente entronizado na glória de Deus, como se Ele fosse um poderoso rei deste mundo.

Jesus vai esclarecer, não só Tiago e João que Lhe tinham pedido os primeiros lugares junto d’Ele, na glória de Deus, mas também os outros apóstolos que tinham ficado ofendidos com os dois irmãos que tinham pedido lugares especiais do Reino de Jesus Ressuscitado.
Jesus apresenta-lhes a chamada «lei do serviço»:
“quem entre vós quiser ser grande, seja o vosso servidor,
e quem quiser entre vós ser o primeiro, seja o servo de todos”.

Com este esclarecimento, Jesus coloca no centro da sua missão salvadora, a atitude de serviço.
A “lei do serviço” é um novo espírito, é uma inversão de perspetivas, em relação ao que os apóstolos esperavam.
Eles só irão compreender bem esta “lei”, depois da Ressurreição e do Pentecostes. 

Jesus está diante da incompreensão dos apóstolos quanto ao desejo de terem poder e de serem reconhecidos por o terem, que habitava nos seus corações, mesmo quando se tratava de realizar ações feitas com muita generosidade.
Esta “lei do serviço” não era fácil no tempo de Jesus e não o é no mundo atual, onde a concorrência está tão presente e é tão valorizada, e onde a necessidade de ter sucesso se impõe em tantas das facetas das nossas vidas.

De facto, há um longo caminho a percorrer para desenvolver esse espírito de serviço que Jesus tanto valorizou.
Recordemos que a palavra "ministério" significa "função de serviço”. Isto também se aplica na Igreja, quando falamos de “ministérios” e de “ministros”. 

É uma questão de serviços que a comunidade pede.
Felizmente, depois de tantos séculos em esquecimento, foi de novo restaurada a instituição do “ministério de catequista” a ser recebido por leigas e leigos. Uma valorização dum serviço tão importante e essencial. 

Este ideal de ser “servidor” continua a ser o ideal dos discípulos de Jesus. Mas para nos tornarmos “servidores” dos outros e pormos em prática a “lei do serviço”, das mais variadas formas e nas mais variadas situações, temos de seguir o exemplo do modo de viver de Jesus, o Enviado de Deus-Pai: “porque o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida pela redenção de todos”.

Tal como Jesus, somos chamados a dar as nossas vidas, no seu conjunto e não apenas em algumas facetas.
Não é uma questão de nos querermos fazer de heróis ou de santos, mas talvez, mais simplesmente, de aprendermos a dar livremente do nosso tempo e da nossa atenção aos outros. Não esqueçamos que é sempre mais difícil dar um bocadinho do nosso tempo e da nossa atenção, do que comprar presentes, porque quando damos dez minutos a outro, estamos a dar dez minutos da nossa própria vida.  

No sábado passado iniciou-se oficialmente o chamado “Caminho sinodal” para preparar o Sínodo dos bispos da Igreja Católica em Outubro de 2023 com o tema “Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”.
O Papa Francisco no lançamento deste caminho pediu a que bispos, padres, religiosos e leigos iniciassem um processo de escuta mútua, sem respostas artificiais, do tipo «pronto-a-vestir», neste caso «pronto a responder». 

Este «caminho sinodal» é destinado a ouvir todas as pessoas. Tanto aquelas que estão mais próximas da Igreja, como as que se afastaram da mesma. Todas as vozes contam, para discernir como ser Igreja ao serviço de todos. 

Se estamos de acordo com o poeta espanhol António Machado que escreveu: «Caminhante, não há caminho, faz-se caminho ao andar», e decidirmos fazer «caminho sinodal» com outros, será um valioso serviço para ajudar a encontrar uma forma de tomar decisões na Igreja, em que os cristãos estejam envolvidos.

   frei Eugénio, op
(17.10.2021)

2024-10-13

Diálogo com o Evangelho

Diálogo com o Evangelho do XXVIII Domingo do Tempo Comum, 13 de outubro, por Frei Eugénio Boléo, no programa de rádio da RCF "Construir sur la roche". Pode ouvir aqui. (gravado em Outubro de 2021)

 

 

EVANGELHO   (Mc 10, 17-27)

Naquele tempo, Jesus pôr-Se a caminho,
quando um homem se aproximou correndo,
ajoelhou diante d’Ele e Lhe perguntou:
«Bom Mestre, que hei-de fazer para alcançar a vida eterna?»
Jesus respondeu:
«Porque Me chamas bom? Ninguém é bom senão Deus.
Tu sabes os mandamentos:
‘Não mates; não cometas adultério;
não roubes; não levantes falso testemunho;
não cometas fraudes; honra pai e mãe’».
O homem disse a Jesus:
«Mestre, tudo isso tenho eu cumprido desde a juventude».
Jesus olhou para ele, amou-o e disse:
«Falta-te uma coisa: vai vender o que tens,
dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu.
Depois, vem e segue-Me».
Ele, porém, contristado com essas palavras, foi-se embora  entristecido. Pois ele tinha muitos bens.
Então Jesus, olhando à sua volta, disse aos discípulos:
«Como será difícil para os que têm riquezas entrar no reino de Deus!»
Os discípulos ficaram admirados com estas palavras.
Mas Jesus afirmou-lhes de novo:
«Meus filhos, como é difícil entrar no reino de Deus!
É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha
do que um rico entrar no reino de Deus».
Eles admiraram-se ainda mais e diziam uns aos outros:
«Quem pode então salvar-se?»
Fitando neles os olhos, Jesus respondeu:
«Aos homens é impossível, mas não a Deus, porque a Deus tudo é possível».
 

DIÁLOGO

Para apreciarmos bem esta passagem tão conhecida do Evangelho de Marcos é preciso ter em atenção a atitude de Jesus: «Jesus olhou para ele, amou-o».

O evangelista Marcos é o único a referir-se ao olhar de Jesus, utilizando um verbo que salienta bem a qualidade desse olhar: «olhar dentro dele». É o modo de olhar que é próprio de Deus. Deus só tem esse olhar, que vê sempre o coração de cada um e Ele próprio vê com o Seu Coração.
 
Também só Marcos salienta o amor de Jesus por este homem de boa vontade, muito provavelmente por ele ter manifestado o desejo de ir mais além do que o cumprimento dos mandamentos da Lei.
 
Jesus propõe-lhe cinco atitudes: vai, vende, dá, vem e segue-me!
Essas atitudes que Jesus lhe propõe tocaram o coração do homem rico e também podem penetrar em nós.
Se ouvimos o apelo de Jesus para o seguirmos, temos de aceitar as responsabilidades e as opções que esse caminhar nos exige.
 
O mais importante que Jesus lhe propõe é «vem» e «segue-me». É este chamamento que motiva o desprendimento do «vai, vende e dá».
Para seguir o caminho com Jesus é necessário afastar os obstáculos que dificultam ou impedem vivermos uma proximidade pessoal com Jesus e com o seu modo de viver.
 
O Evangelho de Marcos não diz que o homem rico se afastou de Deus, mas quer mostrar-nos que este homem educado e de boa prática religiosa, perdeu uma oportunidade que lhe foi apresentada por Jesus, para se tornar um crente comprometido com a Boa Nova que Jesus trazia.
Tendo ficado preso aos seus bens, ficou entristecido, afastou-se sem horizontes, sem caminho.

Nas nossas vidas, há muitas situações em que, tal como o homem rico, o Senhor nos chama.
Pode ser num momento de separação, declínio físico, de problemas de saúde, ou pelo contrário tendo amizades e alegrias partilhadas ou uma fase da vida como a saída dos filhos de casa ou a transição para a reforma e muitas outras. Estas situações levantam-nos questões sobre o modo como Deus, através delas, nos está a chamar.

Estas situações levam-nos a nos interrogarmos: "O que é que eu devo fazer? », « Que queres que eu faça, Senhor?»
Os apelos de Deus são graças que nos são dadas, pois manifestam a confiança que Deus põe em nós para colaborarmos com Ele.
« Jesus olhou para ele e amou-o.»
O homem rico representa todos e cada um de nós, que desejamos sinceramente seguir o caminho de Jesus.
Jesus olha-nos no coração e o Seu olhar está a chamar-nos: «Vem e segue-me » nas circunstâncias e com os bens que temos.
Recebemos o Seu amor confiante e aceitando seguir caminho com Ele, aprendemos a ir gerindo, com os critérios de Jesus, todos os diferentes bens que possuímos.
 
Para seguirmos Jesus, com empenho e liberdade, devemos fazer uma avaliação do que possuímos, desde os nossos bens materiais até à nossa liberdade e independência pessoais.
Será que o que possuímos nos traz liberdade para viver e dar, ou nos amarra e nos faz andar com medo de perder o que temos ?
 
O homem que foi chamado, não satisfez o seu desejo, que o tinha levado a dirigir-se com entusiasmo a Jesus. O apego aos seus bens pode alterar a verdade do homem apoderando-se do seu coração.
Esta passagem  do Evangelho relaciona « tristeza » com « riqueza ». Se a miséria e a pobreza extremas nos entristecem, também os bens nos podem trazer tristeza. Se nos deixamos vencer pelo medo que nos pode levar a preferir a segurança dos bens à incerteza da relação com Jesus e com o seu modo de viver.
Jesus ensina claramente que as tentações, sobretudo as das seguranças e do êxito, fazem parte integrante do caminhar com Ele, que também foi tentado até aos últimos momentos da sua vida, já pregado na cruz.
 
Por isso o nosso seguimento de Jesus deve ser renovado e escolhido de novo em cada dia.
 
  frei Eugénio, op
(10.10.2021)
 

2024-10-06

Diálogo com o Evangelho

Diálogo com o Evangelho do XXVII Domingo do Tempo Comum, 6 de outubro, por Frei Eugénio Boléo, no programa de rádio da RCF "Construir sur la roche". Pode ouvir aqui. (gravado em Outubro de 2021)

 

 

EVANGELHO   (Mc 10, 2-16)

Naquele tempo, aproximaram-se de Jesus uns fariseus, que, para O porem à prova, perguntaram-Lhe: «Pode um homem repudiar a sua mulher?».
Jesus disse-lhes: «Que vos ordenou Moisés?».
Eles responderam: «Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio para se repudiar a mulher».
Jesus disse-lhes: «Foi por causa da dureza do vosso coração que ele vos deixou essa lei.
Mas, no princípio da criação, "Deus fê-los homem e mulher.
Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa,
e os dois serão uma só carne". Deste modo, já não são dois, mas uma só carne.
Portanto, não separe o homem o que Deus uniu».
Em casa, os discípulos interrogaram-no de novo sobre este assunto.
Jesus disse-lhes então: «Quem repudiar a sua mulher e casar com outra, comete adultério contra a primeira.
E se a mulher repudiar o seu marido e casar com outro, comete adultério».
Apresentaram a Jesus umas crianças para que Ele lhes tocasse, mas os discípulos afastavam-nas.
Jesus, ao ver isto, indignou-Se e disse-lhes: «Deixai vir a Mim as criancinhas, não as estorveis: dos que são como elas é o reino de Deus.
Em verdade vos digo: Quem não acolher o reino de Deus como uma criança não entrará nele».
E, abraçando-as, começou a abençoá-las, impondo as mãos sobre elas.
 
DIÁLOGO

Acontece por vezes que uma catequista, quando tem de preparar uma celebração ou uma catequese sobre uma passagem do Evangelho, faz a observação: "Que Evangelho difícil!"

Também me acontece que na preparação de uma homilia dominical, eu diga: "Que Evangelho tão difícil de pregar!"

Um dia, quando pedi ajuda para preparar a homilia, fui dizendo que o Evangelho era muito difícil. Como resposta recebi uma interpelação: "Achas que há Evangelhos fáceis?"

Nunca mais esqueci essa observação tão pertinente.

Se o Evangelho é uma boa notícia sobre o modo de vida de Jesus, na construção do Reino de Deus no tempo presente, é um desafio tão grande, que exige decisões que nunca são fáceis.

Podemos também fazer a mesma pergunta sobre o amor.

"Haverá um amor fácil?”

Viver o amor é um caminho tão cheio de desafios, que nunca é fácil.

Já lá vão cinco anos, quando o Papa Francisco escreveu uma Exortação Apostólica datada de 19 de Março de 2016, a que chamou "A Alegria do Amor” e cujo subtítulo era "O Amor na Família".

Em várias passagens, o Papa chama a atenção para  três pontos sobre o amor, que nos podem ajudar a vê-lo de uma forma muito mais profunda.

1-Cada história de amor é única.

Não existe uma linha de produção para o amor.

É um artesanato que demora a ser feito, que requer um saber-fazer e precisa de ser tratado com cuidado, porque é frágil.

2-Alegrar-mo-nos com as histórias de amor vividas por outros e partilhar com eles a nossa alegria, encorajando-os a continuar.

Não sermos juízes das experiências menos felizes vividas por outros.

3-Reconhecer ao longo da vida que o amor, em todas as suas facetas, é um dom de Deus.

Reconhecer que as pessoas que nos amam e as que nós amamos são também um  dom de Deus.

Mas no Evangelho que acabamos de ler, Jesus não foi questionado sobre o amor na família, mas foi confrontado com a legalidade  dos  maridos poderem repudiar as suas esposas, dando-lhe um certificado de divórcio.

Na Lei de Moisés, as esposas eram consideradas propriedade dos seus maridos e podiam ser enviadas embora, tal como se faz com uma peça de mobiliário doméstico, da qual o marido se quer ver livre.

Havia debates muito acesos entre as escolas de doutores da Lei sobre as condições legais para o repúdio de uma esposa.

Jesus quis basear a sua resposta, não na lei de Moisés, mas no Livro dos Génesis.

Estava, assim, a levar quem o estava a ouvir, a considerar não só a Lei do  povo de Israel, mas o propósito de Deus na criação da mulher e do homem.

Segundo este primeiro livro da Bíblia, Deus Criador fez do homem e da mulher participantes na obra da sua criação e, ao mesmo tempo, fez deles instrumentos do seu amor, confiando-lhes a responsabilidade pelo futuro da humanidade através da transmissão da vida humana.

Segundo a ordem da criação, o amor conjugal entre um homem e uma mulher e a transmissão da vida estão ordenados um ao outro (ver Gen. 1,27-28).

Jesus chamou a atenção para as palavras do Génesis: “não separe o homem o que Deus uniu". Isto é o que tem sido chamado, com um termo jurídico, a indissolubilidade do casamento, que os primeiros cristãos adotaram desde o início.

Esta herança, baseia-se numa visão do ser humano como ser sexuado, mulher e homem, na complementaridade entre eles para se completarem e com igual dignidade.

A Igreja nos finais do século XX, através de numerosos apelos que os bispos de todo o mundo iam fazendo, a partir do que a base dos fiéis  lhes ia manifestando, compreendeu que não podia contentar-se em repetir apenas a proibição do divórcio.

O trabalho foi longo: dois anos de investigações e de discussões em todos os países, 2 Sínodos em Roma e finalmente em 2016, a publicação pelo Papa Francisco da  Exortação Apostólica “A alegria do Amor”, também conhecida pelo nome “Amoris laetitia”, do original latino.

A Exortação, que vale muito a pena ser lida, aborda muitos aspetos: as características do amor do casal e da família na vida quotidiana, a transmissão da vida e a educação dos filhos, a educação sexual nas etapas do crescimento, o papel dos avós, o desafio das crises, etc.

Mas o capítulo da Exortação que imediatamente recebeu mais comentários e suscitou maiores debates foi o 8º: "Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade".

Três verbos que indicam as três  atitudes essenciais que a Igreja  deve ter para com as pessoas em situações de fragilidade ou de imperfeição, marcadas por um amor ferido e mal guiado, restabelecendo nelas a confiança e a esperança. (ver § 291)

A Igreja deve ter bem presente que se as ruturas da união matrimonial vão contra a Vontade de Deus, mas elas são a consequência das fragilidades dos seus filhos, perante a dificuldade de viverem o amor em casal e em família.

As pessoas divorciadas e casadas de novo, num casamento civil, ou que simplesmente vivem juntas, continuam  a ser membros da Igreja que lhes deve manifestar a pedagogia da misericórdia de Deus nas suas vidas  e ajudá-las a aproximarem-se do projeto de Deus para elas. (ver §297)

Duas lógicas percorrem  toda a história da Igreja: marginalizar e reintegrar.

Mas o caminho da Igreja deve ser sempre  o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração.

Esta é a lógica do Evangelho, que Jesus viveu e anunciou.

frei Eugénio, op
(03.10.2021)


2024-09-29

Diálogo com o Evangelho

Diálogo com o Evangelho do XXVI Domingo do Tempo Comum, 29 de setembro, por Frei Eugénio Boléo, no programa de rádio da RCF "Construir sur la roche". Pode ouvir aqui. (gravação não disponível)

 

 

EVANGELHO   (Mc 9, 38-48)

Naquele tempo, João disse a Jesus:
«Mestre, nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome
e procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco».
Jesus respondeu:
«Não o proibais; porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome
e depois dizer mal de Mim. Quem não é contra nós é por nós.
Quem vos der a beber um copo de água, por serdes de Cristo,
em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa.
Se alguém escandalizar algum destes pequeninos
que crêem em Mim, melhor seria para ele que lhe atassem ao pescoço
uma dessas mós movidas pró um jumento
e o lançassem ao mar.
Se a tua mão é para ti ocasião de escândalo, corta-a;
porque é melhor entrar mutilado na vida
do que ter as duas mãos e ir para a Geena,
para esse fogo que não se apaga.
E se o teu pé é para ti ocasião de escândalo, corta-o;
porque é melhor entrar coxo na vida
do que ter os dois pés e ser lançado na Geena.
E se um dos teus olhos é para ti ocasião de escândalo, deita-o fora;
porque é melhor entrar no reino de Deus só com um dos olhos
do que ter os dois olhos e ser lançado na Geena,
onde o verme não morre e o fogo não se apaga».

 

DIÁLOGO

O Evangelista Marcos continua a relatar-nos a etapa fundamental da vida de Jesus a caminho de Jerusalém, onde irá sofrer a Paixão e Crucifixão, às quais se seguirá a Ressurreição Pascal. Nesta etapa decisiva os discípulos continuam a manifestar uma grande incompreensão acerca das prioridades de Jesus na sua pregação.

No relato de hoje, o apóstolo João vai queixar-se a Jesus do sucesso de um homem que expulsava demónios em Seu nome, mas sem pertencer ao grupo. João fala em nome dos discípulos. Porque é que eles estão descontentes com o trabalho desse homem?

Esse homem estava a combater o mal, expulsando demónios, mas eles queriam impedi-lo.

Já no tempo de Moisés, Deus tinha partilhado o poder de profetizar de Moisés com 70 anciãos que se puseram a profetizar, mas isso não durou muito. Ora, dois homens que tinham ficado no acampamento, sem terem ido com os 70 anciãos também receberam o espírito e começaram a profetizar. Josué auxiliar de Moisés há muitos anos insiste em que ele os faça calar, o que Moisés recusa.

Também Jesus perante o apelo de João, diz aos discípulos: “Quem não é contra nós é por nós.” Se o homem tinha esse poder, é porque Deus lho tinha dado. Jesus quer que os seus discípulos tenham presente que o poder e a autoridade que tinham recebido vinha de Deus para fazerem a Sua Vontade.

Jesus deu-lhes poder para servirem o Reino de Deus. Não deviam desviar esse poder para os seus próprios interesses. A Igreja não é proprietária da força de salvação de Jesus. A Igreja deve estar atenta ao Espírito de Deus (Espírito Santo) que felizmente sopra onde quer, ultrapassando todas as fronteiras que lhe queiram impor.

O que é pedido aos discípulos é que reconheçam a obra de Deus, mesmo onde menos se espera. O Espírito que lhes é dado, inspira liberdade, imaginação e criatividade, que desconcerta e surpreende. Por isso, a graça de Deus não está confinada aos instrumentos que a Igreja utiliza, como os sacramentos, nem é monopólio daqueles nela têm funções hierárquicas.

Jesus diz a João e aos seus companheiros que aquele homem não deve ser impedido de expulsar demónios em Seu nome. Se esse homem pode expulsar o mal em Seu nome, é porque Deus lhe deu esse poder. Ou seja, Jesus quer que os discípulos compreendam que o Espírito não conhece fronteiras e não faz aceção de pessoas.

Jesus chama a atenção para a largueza do Reino de Deus, no qual todos podem participar na luta contra o mal e a exclusão.

Quem cria união e comunhão, sob todas as formas, está assim a colaborar com a construção do Reino.

Jesus quis que os seus discípulos formassem uma assembleia “católica”, que quer dizer, universal, onde cada um pode ter um lugar ativo.

Frei Eugénio, op (26.09.2021)


2024-09-15

Diálogo com o Evangelho

Diálogo com o Evangelho do XXIV Domingo do Tempo Comum, 15 de setembro, por Frei Eugénio Boléo, no programa de rádio da RCF "Construir sur la roche". Pode ouvir aqui. (gravado em setembro de 2021)

 

 

EVANGELHO   (Mc 8, 27-35)

Naquele tempo, Jesus partiu com os seus discípulos

para as povoações de Cesareia de Filipe.

No caminho, fez-lhes esta pergunta: «Quem dizem os homens que Eu sou?»

Eles responderam:

«Uns dizem João Baptista; outros, Elias; e outros, um dos profetas».

Jesus então perguntou-lhes: «E vós, quem dizeis que Eu sou?»

Pedro tomou a palavra e respondeu: «Tu és o Messias».

Ordenou-lhes então severamente que não falassem d’Ele a ninguém.

Depois, começou a ensinar-lhes

que o Filho do homem tinha de sofrer muito, de ser rejeitado pelos anciãos,

pelos sumos sacerdotes e pelos escribas;

de ser morto e ressuscitar três dias depois. E Jesus dizia-lhes claramente estas coisas.

Então, Pedro tomou-O à parte e começou a contestá-l’O.

Mas Jesus, voltando-Se e olhando para os discípulos, repreendeu Pedro, dizendo: «Vai-te, Satanás,

porque não compreendes as coisas de Deus, mas só as dos homens».

E, chamando a multidão com os seus discípulos, disse-lhes:

«Se alguém quiser seguir-Me, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me.

Na verdade, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á;

mas quem perder a vida, por causa de Mim e do Evangelho, salvá-la-á».

 

DIÁLOGO

Este diálogo de Jesus com os apóstolos é seguramente um dos mais importantes do NT. 

Passa-se numa ocasião decisiva da vida de Jesus, uns meses antes da sua morte.

Jesus perguntou primeiro aos seus discípulos:

“Qual é a opinião que as pessoas têm acerca de Mim?

Ao terem de responder sobre as várias opiniões populares,

os discípulos são levados por Jesus a refletir, eles também, sobre o que é que eles próprios pensam sobre quem é Jesus.

E a pergunta direta veio logo a seguir: “E para vocês, quem é que Eu sou?”

Pedro tomou a dianteira e respondeu: “Tu és o Messias”, isto é “o libertador do povo” que os judeus esperavam. Em grego: “Tu és o Cristo”.

Cristo é a tradução da palavra grega khristos que quer dizer ”Ungido” ou “Escolhido por Deus”.

Pedro deu uma resposta certíssima, mas faltava ver se ele compreendia bem o que é queriam dizer as palavras certas com que respondeu

Mas o diálogo não podia ficar por aqui.

Pedro podia estar muito satisfeito por ter acertado na resposta, mas o que ele entendia por “Messias”, por “Cristo”, por “Salvador prometido”, como vamos ver, era afinal o oposto do que Jesus entendia como sendo a missão que Deus-Pai lhe tinha dado como Messias.

Jesus começou então a apresentar aos discípulos, abertamente, o que lhe iria acontecer nos tempos que se iam seguir: os grandes sofrimentos, a rejeição por parte dos mais responsáveis, a condenação, a tortura e a morte e três dias depois a ressurreição, a vitória sobre a morte e o desamor.

Jesus ensinou-lhes que tais acontecimentos até à sua ressurreição, não eram uma fatalidade, mas um caminho incompreensível, que Deus-Pai queria que Ele seguisse.

Ora, Pedro, apesar da resposta certa que tinha dado, não conseguia aceitar que o “Messias-Salvador” fosse passar por tudo isso.

Esse cenário com fraqueza, rejeição e morte na cruz, não correspondia em nada à imagem que os judeus tinham do único Deus que seria enviado para salvar Israel.

As pessoas que esperavam que Deus castigasse os que que praticavam o mal e recompensasse os bons, não podiam aceitar a ideia de que o Enviado de Deus pudesse ser derrotado e morto.

Então, com o seu ímpeto habitual, Pedro chamou Jesus à parte, e cheio de amizade, repreendeu-o:

«Que conversa é essa Mestre? A partir de agora e, tendo em conta que és mesmo o Messias, não há inimigos que nos ponham as mãos em cima, a tua força do Alto vence-os a todos!”

Na sua lógica, o Messias tinha todo o poder de Deus para derrotar os inimigos, e por isso quer convencer Jesus a corrigir o caminho que lhes tinha anunciado que ia seguir.

Como é que Jesus respondeu a esta iniciativa de Pedro?

”Vai-te Satanás! porque não compreendes as coisas de Deus,

mas só as dos homens».

Jesus é duríssimo para com Pedro e diz-lhe: ”Vai-te Satanás!”, que são as mesmas palavras que Jesus dirigiu ao Demónio quando este o foi tentar no deserto.

E, isto é dito, pouco depois de o ter elogiado pela resposta certíssima que tinha dado sobre quem Ele era.

Habitualmente as pessoas consideram que a atitude mais grave de Pedro foi ter negado três vezes que era discípulo de Jesus, quando este estava a ser condenado à morte por crucifixão.

Mas nessa ocasião, quando Jesus ia com a cruz às costas, dirigiu simplesmente um olhar cheio de misericórdia para Pedro, sem lhe dizer uma só palavra. E esse olhar foi compreendido por Pedro que foi chorar, profundamente arrependido.

Mas com atitude, Pedro, com toda a amizade queria afastar Jesus do caminho que o levaria à condenação, à tortura e à morte por crucifixão, onde está a gravidade a ponto de Jesus lhe ter gritado: ”Vai-te  Satanás!”

Pedro era o apóstolo em quem Jesus tinha maior confiança e a quem tinha dado a maior responsabilidade. Era precisamente Pedro que, com a melhor das intenções, O estava a procurar convencer que utilizasse os seus poderes de Messias, para destruir os planos dos que O queriam condenar à morte.

Pedro, o homem de confiança de Jesus, estava a tentá-lO, para o afastar da Vontade de Deus.

Esta conversa é uma das mais importantes dos Evangelhos.

E porquê?

Porque desde o tempo de Jesus até aos nossos dias, caímos na mesma atitude de Pedro: ficamos muito satisfeitos por darmos respostas certas sobre a nossa fé de cristãos, mas falta-nos conhecer bem como é que Jesus viveu para fazer avançar a aventura a que chamou o “Reinado de Deus”.

O que se passou com Pedro demonstra que leva muito tempo a aderir à partilha das prioridades de Jesus.

Jesus perguntou aos seus discípulos quem eles pensavam que Ele era.

Pedro respondeu muito bem: "És o Messias".

Mas o que é que essas palavras significavam para ele?

Pela atitude que Pedro teve, depois de ter recebido o ensinamento de Jesus sobre o que lhe iria acontecer, constatamos que ele pensava num Messias poderoso que devia usar o Seu poder, destruindo as forças do Mal.

Não tinha ainda compreendido que Jesus era um Messias cuja força passava pela sua fraqueza.

O Deus que descobrimos, graças a Jesus, não esmaga o Mal, mas em Jesus, seu Filho e seu Enviado, transforma o Mal em Bem.

Jesus não escapou à cruz, mas revelou a incapacidade de o Mal ter a última palavra, para vencer com a Vida e com o Amor.

E hoje?

A questão que Jesus colocou aos discípulos continua a ser decisiva para nós.

Como vamos responder à pergunta direta que Jesus nos faz:

“E para ti, quem é que Eu sou?”

O que é que esperamos de Jesus nas nossas interações com Deus e de Deus connosco?

Sabendo que Jesus é um Libertador que não evitou o sofrimento, mas que o transformou, será que ainda estamos dispostos a continuar a ser seus discípulos e a segui-Lo na confiança e no modo de viver que foi o d’Ele?

 

frei Eugénio, op (12.09.2021)


2024-09-07

Diálogo com o Evangelho

Diálogo com o Evangelho do XXIII Domingo do Tempo Comum, 8 de setembro, por Frei Eugénio Boléo, no programa de rádio da RCF "Construir sur la roche". Pode ouvir aqui. (gravado em setembro de 2021)

 

 

EVANGELHO (Mc. 7, 31-37)

Naquele tempo, Jesus deixou de novo a região de Tiro e, passando por Sidónia, veio para o mar da Galileia, atravessando o território da Decápole.
Trouxeram-Lhe então um surdo que mal podia falar e suplicaram-Lhe que impusesse as mãos sobre ele.
Jesus, levando-o a sós para longe da multidão, meteu-lhe os dedos nos ouvidos
e com saliva tocou-lhe a língua.
Depois, erguendo os olhos ao Céu, suspirou e disse-lhe:
«Effathá», que quer dizer «Abre-te».
Imediatamente se abriram os ouvidos do homem, soltou-se-lhe a prisão da língua
e começou a falar corretamente.
Jesus recomendou que não contassem nada a ninguém.
Mas, quanto mais lho recomendava, tanto mais intensamente eles o apregoavam.
Cheios de assombro, diziam: «Tudo o que faz é admirável: faz que os surdos oiçam e que os mudos falem».

DIÁLOGO

O Evangelho de hoje fala-nos de outro milagre de Jesus. Podemos imaginar como se passou.
Vemos Jesus a fazer uma sucessão de gestos simbólicos.
Marcos diz-nos que Jesus levou o surdo para o lado, a sós para longe da multidão.
A palavra utilizada para "o levar de lado (apo-lambano) é geralmente traduzida como "receber" em vez de "levar". Ficamos assim com a impressão que Jesus ao afastar-se com o homem, estava a recebê-lo na sua companhia privada, para um encontro mais pessoal, que não podia acontecer no meio de uma multidão.
Jesus realizou então a cura, colocando os seus dedos nos ouvidos do homem e pondo a sua própria saliva na sua língua.
Esses gestos de cura eram típicos do meio cultural de Jesus.
No entanto, a vontade de tocar uma pessoa doente era um sinal de solidariedade e o partilhar a sua própria saliva com o homem, era um gesto de intimidade especial.
Depois de fazer estes gestos, Jesus assumiu uma atitude de oração, de relação com Deus Pai, “Ergueu os olhos ao Céu” e “suspirou”, que no original significa rezar a pedir com muita intensidade. São Paulo (Rom 8, 26) diz que é o modo de fazer do Espírito Santo “que intercede por nós com suspiros sem palavras” .
Então Jesus com a intensidade dum forte suspiro, diz “Effatha!”, uma palavra em aramaico, a língua que Jesus falava, que se traduz "Abre-te".
Imediatamente o surdo-mudo se abriu à comunicação, ouvindo e falando.
Jesus não diz aos ouvidos "Abram-se" e à boca "Abre-te". É ao deficiente que diz "Abre-te".
É como se Jesus lhe tivesse dito: "Ouve, mas não basta ouvires palavras, também tens de ouvir, com o coração». E completasse: “Fala, mas não basta dizeres palavras, é preciso que também comuniques”.
O evangelista Marcos tem o cuidado de nos dizer que o falar do homem só se tornou compreensível depois de os seus ouvidos terem sido abertos.
Tanto a nível natural como a nível espiritual, a audição deve preceder a fala.
Até a sabedoria popular diz que Deus nos deu dois ouvidos e uma boca para escutarmos duas vezes mais do que falamos.
Jesus ensina-nos aqui que o importante nas relações humanas é haver encontro de pessoas.
Jesus quer que o nosso coração e toda a nossa pessoa escutem as palavras que Ele nos dirige.
As suas palavras são-nos dirigidas pessoalmente na intimidade dos nossos corações, como o fez com o surdo-mudo.
Jesus vem para curar e salvar a pessoa inteira, para dar sentido às nossas vidas, sejam quais forem os acontecimentos que as vão marcando.
Que a palavra que Jesus disse com toda a sua energia “Effatha”, possa continuar a ser ouvida no nosso íntimo, enchendo-nos de confiança que o Amor de Deus pode realizar milagres inimagináveis, para bem de toda a humanidade, através de cada um de nós.

     frei Eugénio, op (2021.09.09)

2024-08-31

Diálogo com o Evangelho

Diálogo com o Evangelho do XXII Domingo do Tempo Comum, 1 de setembro, por Frei Eugénio Boléo, no programa de rádio da RCF "Construir sur la roche". Pode ouvir aqui. (gravado em agosto de 2021)

 

 

 

EVANGELHO   Mc 7,1-8, 14-15, 21-23

Naquele tempo, reuniu-se à volta de Jesus um grupo de fariseus e alguns escribas

que tinham vindo de Jerusalém.

Viram que alguns dos discípulos de Jesus comiam com as mãos impuras, isto é, sem as lavar.

Na verdade, os fariseus e os judeus em geral

não comem sem ter lavado cuidadosamente as mãos, conforme a tradição dos antigos.

Ao voltarem da praça pública, não comem sem antes se terem lavado.

E seguem muitos outros costumes a que se prenderam por tradição,

como lavar os copos, os jarros e as vasilhas de cobre.

Os fariseus e os escribas perguntaram a Jesus:

«Porque não seguem os teus discípulos a tradição dos antigos, e comem sem lavar as mãos?»

Jesus respondeu-lhes:

«Bem profetizou Isaías a respeito de vós, hipócritas, como está escrito:

‘Este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de Mim.

É vão o culto que Me prestam, e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos’.

Vós deixais de lado o mandamento de Deus, para vos prenderdes à tradição dos homens».

Depois, Jesus chamou de novo a Si a multidão e começou a dizer-lhe:

«Escutai-Me e procurai compreender. Não há nada fora do homem

que ao entrar nele o possa tornar impuro.

O que sai do homem é que o torna impuro; porque do interior do homem é que saem as más intenções:

imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão, inveja, difamação, orgulho, insensatez.

Todos estes vícios saem do interior do homem e são eles que o tornam impuro».


 

DIÁLOGO

A passagem do Evangelho que acabamos de ler, começa com uma discussão de Jesus com as autoridades da época (fariseus e escribas) sobre a lavagem das mãos antes das refeições.

Para os judeus do tempo de Jesus, a lavagem não era uma prática sanitária, uma questão de higiene, mas uma norma religiosa que não podia deixar de ser cumprida

Quando dizemos «pureza», «puro», queremos referir-nos ao que contrasta com «sujo», «infestado», «manchado», «poluído».

Todas estas situações se referem a diversos ambientes do mundo físico.

Fala-se, por exemplo, de um «caminho imundo», de «ar poluído» , de «casa infestada».

Mas a discussão de Jesus, não foi sobre a higiene, mas sobre a noção de pureza ritual. Esta noção é bastante difícil de compreender, pois não tem a ver com a sujidade, nem com a falta de limpeza.

A maioria dos rituais de purificação existiam muito antes que se soubesse que os micróbios causam doenças.

Além disso, mesmo as pessoas que são exigentes com a limpeza pessoal e dos objetos, também elas têm de praticar esses ritos.

A chamada pureza ritual é a condição em que as pessoas devem estar para poderem participar em determinados atos religiosos, especialmente os de adoração duma divindade.

As condições para se considerar que se está apto para pratica do culto variam de religião para religião.

Uma grande parte dessas impurezas podem, no entanto, ser purificadas através dos chamados ritos de purificação sobretudo em relação com a água, mas também com rituais mais elaborados.

Alguns exemplos: Dentro do Budismo japonês, uma bacia chamada de «tsukubai» é fornecida à entrada dos templos para que os crentes façam abluções. Também é usado para a cerimónia do chá.

No Hinduísmo, uma parte importante da purificação ritual é o banho de todo o corpo, especialmente em rios considerados sagrados como o Ganges.

No Judaísmo e no Islão as leis da pureza ritual dizem respeito a alimentos, a líquidos, a roupas e utensílios e a pessoas contactadas pelos crentes.

No Cristianismo, encontramos variados costumes e tradições, segundo as épocas e as zonas do mundo.

Lembro apenas as mães que davam à luz um filho, não podiam participar nos batismos dos filhos.

A não-participação em algumas missas dominicais, impedia os fiéis de participar na comunhão nas Eucaristias seguintes.

As mulheres sem um véu na cabeça não podiam entrar numa igreja e ainda menos participar numa Eucaristia ou cerimónia litúrgica.

Uma das principais barreiras do relacionamento entre judeus e os não-judeus (os chamados «pagãos») eram precisamente as normas sobre o «puro» e o «impuro».

Jesus vai proclamar de modo claro:” Não há nada fora do homem que ao entrar nele o possa tornar impuro.”

Nenhuma sujidade «material» pode tornar o homem impuro no sentido moral, ou seja, interior.

A pureza moral tem a sua fonte exclusiva no interior do homem: provém do «coração».

Já os profetas, os sábios e os salmistas, proclamavam que os rituais de purificação e as cerimónias no Templo não podiam obter a pureza moral.

Não se deve colocar ao mesmo nível, o que é secundário, neste caso, as tradições humanas, com o que é essencial na vida moral: fazer a Vontade de Deus, pôr em prática o que Ele quer, para o bem de todas as pessoas e da criação inteira.

Em vez de centrarmos as nossas energias para nos deixarmos abrir ao que Deus quer, que podemos conhecer pela sua Palavra, sobretudo graças a Jesus, virámo-nos para nós próprios, procurando fazer determinados gestos e rituais religiosos, ficando satisfeitos por os termos concretizado bem.

Esta auto-satisfação nos rituais bem cumpridos, leva-nos também a olharmos com certa superioridade para os que não os cumprem.

Ora o ensinamento de Jesus, orienta-nos para a purificação do nosso interior, através do nosso modo de amar ou desamar o próximo, como Jesus viveu e ensinou.

Como o apóstolo Tiago dirá mais tarde: "Diante de Deus nosso Pai, a forma pura e irrepreensível de praticar a religião é ajudar os órfãos e as viúvas na sua aflição, e mantermo-nos livres da corrupção no meio do mundo" (Tiago 1, 27).

Jesus propõe-nos que despertemos a nossa consciência, para fazermos discernimentos mais conformes com o Seu Evangelho

Demasiadas vezes, deixámo-lo adormecer.

Agimos, sem nos interrogarmos sobre as nossas intenções, nem sobre as consequências para os outros e para nós mesmos, dos nossos atos.

Jesus mostra-nos que no centro da moralidade evangélica está a consciência, que se deve deixar iluminar e guiar pela sua confiança em Jesus e pelo Evangelho.

Jesus quer que atuemos com liberdade interior, por nós próprios, levando a sério as nossas responsabilidades.

Claro que frequentemente não conseguimos agir como Jesus teria feito no nosso lugar. Há todo um caminho de vida a ser feito, há falhas, há erros, há desamor, mas o que conta é procurarmos sempre que a consciência seja iluminada pela Palavra de Deus e que coloquemos nela o nosso coração.

frei Eugénio, op (2021.08.29)