2007-10-04

VIVA o EVANGELHO de Domingo, 7 de Outubro

Lc. 17,5-10.
Os Apóstolos disseram ao Senhor:
«Aumenta a nossa fé.»
O Senhor respondeu:
«Se tivésseis fé como um grão de mostarda, diríeis a essa amoreira: 'Arranca-te daí e planta-te no mar', e ela havia de obedecer-vos.»
«Qual de vós, tendo um servo a lavrar ou a apascentar gado, lhe dirá, quando ele regressar do campo: 'Vem cá depressa e senta-te à mesa'? Não lhe dirá antes: 'Prepara-me o jantar e cinge-te para me servires, enquanto eu como e bebo; depois, comerás e beberás tu'? Deve estar grato ao servo por ter feito o que lhe mandou? Assim, também vós, quando tiverdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei: 'Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer.

1 comentário:

  1. Junto o artigo do meu irmão Manuel.

    2007.10.07

    LITURGIA PAGÃ


    Pagão provém do latim pagus = marco de terreno, aldeia,

    por oposição à cultura citadina. O radical indo-europeu pak (donde pau) designa a união, estabilidade e a força próprias de Pacto e Paz.

    Página também deriva do mesmo étimo, significando originalmente

    campo lavrado em esquadria respeitando um marco («pau») bem fixo,

    ao que se assemelha uma folha de papel escrita.

    Liturgia deriva do grego laos (povo, leigo) e ergon (trabalho),

    donde «serviço público».

    Liturgia pagã é o esforço de trabalhar com Deus

    com a liberdade, consciência e humildade de ser «pagão».


    27º Domingo do tempo comum (ano C)

    1ª leitura: Profeta Habacuc, 1, 2-3; 2, 2-4

    2ª leitura: 2ª Carta de S. Paulo a Timóteo, 1, 6-14

    Evangelho: S. Lucas, 17, 5-10



    Deus é mau pagador



    Habacuc não vivia em dias melhores do que os nossos: o povo judeu era continuamente arrasado pelos povos mais poderosos (provavelmente os Caldeus, cerca do ano 600 antes de Cristo). E ele não se inibe de duras recriminações contra Deus: então nós, que somos o teu povo e acreditamos em Ti, somos espezinhados pelos teus inimigos, que se riem da nossa fé e se gabam de que não precisam de Deus nenhum para serem fortes? Como é que Tu permites que o «justo» (nós!) seja tanto tempo maltratado pelo «ímpio» (os outros)? Na oração de Habacuc, Deus vai-lhe dando umas achegas: o tal «nós» não é assim tão justo, é talvez o verdadeiro «ímpio», pois dizendo que acredita em Deus, não age à imagem da bondade de Deus; não estará até, de algum modo, a provocar a ira e crueldade dos povos vizinhos? Afinal, não são apenas os Caldeus que põem em cheque a justiça divina. Por outro lado, o comportamento condenável de toda uma sociedade é fruto da semente do mal, que compete a cada pessoa deixar ou não crescer dentro de si.

    Habacuc, porém, tem a experiência, adquirida ao longo da vida e ao longo da cultura do seu povo, de que vale a pena esperar em Deus, mesmo «contra toda a esperança», como dirá S. Paulo centenas de anos depois. É este Paulo que, na segunda leitura, pede a Timóteo que não se envergonhe de «dar testemunho de Nosso Senhor», porque Deus «não nos deu um espírito de timidez, mas de fortaleza, de caridade e de moderação».

    Nos dias de hoje, o que parece mais faltar é o espírito de fortaleza, e o resto da frase diz exactamente as condições para o receber: amor e moderação. Com efeito, ter força e não a saber moderar, só é contra-producente. Por seu lado, o próprio amor necessita de prudência, para obter um efeito mais duradouro – uma prudência que se confunde com a esperança pertinaz.

    Mas o evangelho é estranho: os discípulos pedem a Jesus: «aumentai a nossa fé». E Jesus, longe de responder, até parece classificar a pequenez da fé deles, que nem se assemelha à mais pequenina das sementes. Logo a seguir, chama de «inúteis» os servos que trabalharam todo o dia.

    Estes dois exageros reflectem expressões da época, que jogam muito com os paradoxos. Jesus tem por base o procedimento habitual: os servos não comem à mesa do seu senhor, e é suposto que trabalhem bem. A novidade está no adjectivo «inúteis» (a palavra original é difícil de traduzir por um único vocábulo): os bons servos estão sempre dispostos a continuar a servir. É como se o pagamento fosse a consciência de ter cumprido o próprio trabalho, de acordo com a função que cada qual é capaz de exercer. Note-se, aliás, que o próprio Jesus Cristo se apresenta como «aquele que serve» (Lucas, 22, 27) e, como senhor, convida os servos para a sua mesa (Lucas, 12, 37). Na dimensão humana, o servo é submisso; na dimensão divina revelada, somos todos uma comunidade de “servidores”.

    É mesmo preciso muita fé para correr o desafio de amar desta maneira, e muita moderação para não desestabilizar as relações humanas, agindo suavemente (a suavidade é uma característica típica do Messias, no Antigo e Novo Testamento). Mas é assim o amor: não se cansa, não se julga merecedor de paga ou de descanso, não se julga superior a ninguém. Quando este amor não tem cabimento nas relações humanas, desembocamos numa luta feroz pelos nossos «direitos», e se possível com pouco trabalho.

    Ter uma fé tão pequenina como um grão de mostarda faz coisas espantosas – é a lição. Mais uma vez, não importa a quantidade mas a qualidade. A frase do evangelho «se tivésseis fé, diríeis...» seria mais exacta, segundo especialistas, com uma ligeira mas fundamental alteração: «se tivésseis fé, teríeis dito... teria acontecido...». Porque a fé não é esperar que as coisas aconteçam, mas fazê-las acontecer, confiando que Deus fará crescer a semente da acção e da fé. Como «servos inúteis», nunca devemos parar de trabalhar; como «servos inúteis», sabemos que o trabalho, por muito que pareça, de muito pouco valerá sem pedirmos a Deus que a nossa acção se integre no seu plano de libertação do Homem. É por isso que vale a pena querer erradicar a injustiça deste mundo; e vencer o desânimo perante o projecto da educação necessária para que saibamos harmonizar as nossas liberdades.

    O mais custoso é o chamado «silêncio de Deus», quando nos sentimos sem base nenhuma para ter esperança. Nos momentos difíceis, quando queremos ter fé, parece que nos encontramos sozinhos na escuridão. E esse Deus que se diz estar sempre connosco, e que se tem revelado como companheiro, afinal só torna mais negra a solidão. Por muito que trabalhemos nos campos de Deus, por muito que dêmos o nosso melhor, chegamos à noite e deparamos com a casa deserta. Deus nem deixa um recadito a dizer ao menos que um dia há-de aparecer para pagar...

    Será grande consolação dizer que isto se passa e tem passado com muita gente que se esforça por praticar o bem? Aliás, procurar fazer o bem no meio das maiores desgraças sociais – como nos pode fazer sentir o Deus que se chama Alegria? Nunca a desgraça alheia deve servir de consolo, mas apenas de incentivo para a debelarmos. Talvez seja isso mesmo: incentivo. Como dizia o evangelho de um domingo recente, não podemos desanimar de procurar a moeda perdida; como não podemos desanimar de procurar o sentido perdido da vida. Bastaria ler a Bíblia para ver como, ao longo de muitas centenas de anos, gente da rua ou gente dos palácios protestou contra Deus, porque não há justiça neste mundo, e nem o próprio Deus parece dar bom exemplo. Faz bem ter presente que Jesus, no Jardim das Oliveiras, tremeu apavorado com a perspectiva de uma morte extremamente penosa no plano físico e moral; pediu a Deus que o livrasse disso tudo; e já na cruz, as suas últimas palavras são a eterna pergunta do ser humano perante o mistério desta vida: «meu Deus, porque me abandonaste?»

    É verdade que a tradição refere que, no Jardim das Oliveiras, «veio um anjo consolá-lo», expressão que significa que Deus rompeu o silêncio, e lhe deu forças para continuar a agir como «um servo inútil», de tal modo que, suspenso já da cruz, soube consolar os outros. Mas depois, tudo parece ficar na mesma ou pior...

    Estranho pagamento, o de Deus! Tão estranho, que todos somos tentados a dizer que não vale a pena contar com ele. E no entanto, não tem faltado e não falta quem teimosamente semeie tudo o que há de belo e de bom. Não deverá cada um de nós ser o «anjo consolador» dos outros? Não será por isso que Jesus Cristo disse que está connosco sempre que trabalhamos em nome dele?

    Quem pagará a quem faz o Bem?


    MANUEL ALTE DA VEIGA

    m.alteveiga@netcabo.pt

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