2008-11-25

O perigo das religiões: intervenção de Danièle Hervieu-Léger nas Semanas Sociais


As Semanas Sociais de França são um evento criado em 1904 para dar a conhcer e aprofundar o pensamento social da Igreja. Este ano o tema era " As religiões: ameaça ou esperança para as nossas sociedades?". Os vídeos de algumas intervenções estão disponíveis na página de um programa de televisão sobre a actualidade religiosa neste endereço. A intervenção que aqui gostaria de destacar e de ver comentada é a da socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger, autora, nomeadamente, de Catholicisme, la fin d'un monde, Paris, Bayard, 2003. Deixo aqui o resumo com a identificação de algumas citações.
Serão as religiões são perigosas? A questão seria, há 30/40 anos atrás, inesperada porqnanto se pensava que a religião estava definitivamente banida do espaço público no Ocidente. A religião deixara até de ser um assunto sociológico relevante. Hoje, no entanto, o retorno do religioso à cena público é um dado que não se pode senão constatar.
Para Danièle-Hervieu Leger este regresso faz-se em condições precisas, em concreto, pensa que há uma relação entre a modernidade e o regresso do religioso - que aliás não é esporádico nem estranho àquela). Por vezes, a questão tem sido colocada em termos de religiões perigosas ou de religiões (D-H. Leger concretizou o caso do Islão) que não estariam aculturadas à modernidade ocidental.
O problema, no entanto, está noutro lugar. A saber, no momento cultural, social e político em que vivemos: a individualização, a degradação dos mecanismos de transmissão de tradições comuns, os efeitos de desculturação (a perd de referências), a desutopização das sociedades democráticas (crise dos grandes ideais que nos representavam), o desaparecimento de um horizonte de expectativas: aqui está o campo em que as religiões prosperam, pois oferecem um quadro de referência global, inscrevem os indivíduos numa tradição global, em um quadro de atomização das relações sociais. Trata-se assim de uma "poderosa compensação da ordem fictiva perdidada".
As religiões são, no entender da socióloga, um formidável recurso e um perigo público a um tempo. O perigo não é o de uma religião particular ("não subscrevo que haja uma religião perigosa"). O perigo é de que essas pertenças comunitárias asseguradas pela religião se tornem exclusivas e excluidoras (visto que a revelação não é uma escolha comunitária). Perigo tanto mais agudizado quanto é certo que a religião tem uma memória de combate. "É preciso uma imensa conversão das religiões para podermos ver a tolerância entre religiões, a renúncia ao proselitismo, a convivência entre religiões."
Advertindo contra uma eventual colagem das suas propostas a um preconceito religioso, afirmou que "Todas as actividades humanas, mesmo as mais nobres, tem um lado perigoso.O que me interessa são as conjunturas de actualização nas quais esta violência da religião - violência simbólica de controlo da autonomia do indivíduo, violência efectiva com o risco de guerras de religião) é susceptível de se libertar".
"AS sociedades democráticas, pelo facto de terem construído o quadro jurídico e político da liberdade religiosa, pensam que esconjuraram a perigosidade da religião. Mas a verdade é que "a perda de religião é extraordinariamnete frágil" e "sobretudo que depende inteiramente da sua capacidade própria de produzir as fórmulas do viver em comum" de "dotar-se de um horizonte de valores comuns", de "fornecer aos indivíduos e aos grupos que a compõem uma representação partilhada da sua própria continuidade. Dito de outro modo a perda de religião está indexada à perda do político."
É este o perigo: a perda de valores comuns, a degradação da consciência comum do nós. Aí se apoia, por exemplo, a subida das revindicações identitárias baseadas na religião.
Há pois uma crise do projecto político do nosso projecto comum. "Como é que as religiões podem tomar posição sobre esta conjuntura de actualização do risco religioso?"
Várias vozes respondem a este desafia segundo Danièle Hervieu Léger. Em primeiro lugar uma voz que se levanta sempre para "surfar a onda" que é a dos fundamentalismos que cultivam uma totalização do religioso. "Na minha opinião não tem qualquer hipótese, salvo o caso de um cataclismo das sociedades ocidentais". O episódio Sarah Palin, afirmou, mostrava bem esse fracasso.
Outra voz mais sedutora é a do apaziguamento ético-simbólico. A religião passa a ser encarada como património ético. Sublinha-se então a convergência em um núcleo duro de valores partilhados entre as diversas religiões. Um conferencista anterior tinha apelidade esta ideia de monoteísmo dos valores. Tem esta voz o mérito de realçar o trabalho civilizacional das religiões. "O problema desta corrente é que tem um limite" afirmou D. Hervieu-Léger, a saber, o sucesso da aculturação dos valores religiosos na modernidade. Por outro lado, "esta voz é completamente batida em brecha pela realidade concurrencial do mercado".
Mas há uma outra voz: a da interpelação. Nas "nossas sociedades em deficit de interpelação", "esta questão da fundação que é o esquecido da política", a interpelação pelo "que faz com sejamos o que hoje somos". Trata-se de retomar "pela leitura contínua do passado o longo trabalho civilizacional", de reconhecer "as nossas dívidas para com o passado", "comprometer-se em um enorme trabalho intelectual". "Não estamos aí - afirma - no domínio dos sentimentos". O sentido desta interpelação não é o de uma releitura da tradição para encontrarmos "um fundamento mítico do sentido" que, de resto, a modernidade nos ensinou a desmistificar. É antes o de nos descobrimos "gerados pelo passado", de fazermos uma "reapropriação contínua" sendo que "o ponto de ancoragem desta tradição é inelutavelmente um ponto em fuga". "O sentido desta via é a procura". Chamou a esta via "a via mística". Terminou, no entanto, com a expressão de um receio: o de que "esta voz tenha alguma hipótese nas estratégias institucionais (de todas as tradições)".

1 comentário:

  1. Este último parágrafo é para mim muito verdadeiro. A importância da História na construção do futuro - como que um fazer comunidade também com quem nos precede e com quem nos sucede. Não querendo puxar a brasa para a minha sardinha, parece-me que esta dimensão da História está entretecida com o Cristianismo: Deus deu-se ao trabalho de participar como um de nós na nossa História sem apagar o passado nem mistificar o futuro. Que importância damos nós às nossas Histórias? A começar por aquelas que pensamos estar cansados de ouvir dos mais velhos das nossas famílias ou as que nos parecem ininteligíveis dos mais novos?
    dv

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